quarta-feira, 20 de outubro de 2010

ESTADO DE EMERGÊNCIA, MISÉRIA E SECA NO CEARÁ (1970 – 1987)



por Dennis de Oliveira Santos

Introdução

Falar da região cearense é associá-la a imagem da seca, que desde o século XVI à atualidade carrega em sua memória coletiva um “redemoinho de dores” sentido na pele por milhares de retirantes, que em todos os seus aspectos socioeconômicos, ora foi descrito por pura frieza e racionalidade por cientistas, ora por profundo lirismo e esperança por poetas e músicos. Seus impactos sociais foram amplamente documentados, isso, em função dos vários séculos que esta crise climatéria perpassou, e, que, não foi vencida em sua totalidade.

A década de setenta trouxe a tona um novo questionamento por parte da administração pública e do povo cearense acerca dos ciclos da crise climatéria. Problemática, de profundas raízes históricas, que vez ou outra foi interpretada de má forma, como por exemplo, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, que, se referindo à seca de 1955, cometeu o equívoco de dizer que “(...) esta é a última seca que assola o Nordeste” (BIBLIOTECA NACIONAL, 2005, p. 86). Nos anos 80, esta situação não foi alterada, pois o estado do Ceará sofreu nesta década com dois ciclos de seca: 1980 a 1983 e 1987 (SUDENE, 1985). Diante desse contexto, qual foi a ação tomada pelo poder público no combate as secas no Ceará entre os anos de 1970 a 1987?

Falsas Esperanças de Inverno (1970)

Os problemas rotineiros e as ações políticas que trouxeram um desencantamento por parte do povo cearense frente à questão das secas no ano de 1970 prometiam aos agricultores da região produtivos meses com as “esperanças” de inverno. Dias em que de forma momentânea, o “sertão iria virá mar”. Porém, as “esperanças” foram logo desfeitas diante de mais um ano de seca, que intensificou as crises advindas desde séculos passados.

Na região do Jaguaribe, tendo alguns dias com a queda de chuvas no mês de janeiro, os agricultores organizaram o plantio de gêneros alimentícios para as suas subsistências. Todavia, as precárias condições de cultivo provenientes da estiagem, que logo se iniciou no final de janeiro, prolongadas até março, tiveram por conseqüência a perda total destes produtos (FROTA, 1985).
Logo, os agricultores tentaram um segundo plantio. Desta vez usaram sementes selecionadas, as quais dariam um acréscimo à produção agrícola local financiado pelo Plano Nacional da SUDENE. Apesar de todo o esforço desta instituição na criação de mercados, centrais de abastecimento, distribuição de sementes, tal projeto não obteve seguros resultados que neutralizassem os efeitos da estiagem. Diante desta calamidade social, o estado cearense recebe uma maior atenção do âmbito político nacional. O que é verificável no discurso do ex-presidente Médici, que tentando dá respostas às provocações do político Epitácio Pessoa, proferiu:

Vim ver e vi. Vi o Nordeste de dentro, dos sertões secos de Cratéus e dos Currais Novos. Vi a paisagem árida, as plantações perdidas, os lugares mortos. Vi a poeira, o sol, o calor, a inclemência dos homens e do tempo, a desolação. (...) Vi tudo isso com os meus próprios olhos e concluí o que não cheguei a ver. Nada, em toda a minha vida, me chocou assim e tanto me fez emocionar e desafiar minha vontade (CEARÁ, 1970).

Daí em diante surgiu determinadas repercussões da visita do presidente a região: o deputado Fernando Melo formulou um plano que foi entregue a Médici. O grande novo fato foi às execuções de ações efetuadas pela SUDENE, que existia há dez anos, mas só naquele momento teve atitudes mais eficazes. Coube a esta instituição o planejamento de operações, execução de obras, distribuição de verbas, uso de carros-pipas e distribuição de alimentos (GUERRA, 1981). Porém, essas ações foram insuficientes, causando muita insatisfação e revoltas por parte da população. Dados bem delineados no relatório governamental:

A seca de 1970 atingiu uma população ativa de 500 mil pessoas, alcançando outros dois milhões de indivíduos. O fenômeno climático afetou oito Estados, correspondendo a um total de 605 municípios, o que equivale a 62% da área do Polígono das Secas (SUDENE, 1979, p. 44).

Os governantes locais, em especifico os prefeitos do interior do estado, tentaram enfrentar o problema limitando-se as suas velhas possibilidades. Em Limoeiro do Norte, por exemplo, o prefeito local tentou remediar a situação, abrindo pequenas frentes de serviços que trouxessem auxílio às pessoas através do “(...) Programa Alimentos Para a Paz” (FROTA, 1985). Outra ação paliativa adotada, desta vez em Crateús, foi a distribuição de alimentos gratuitamente. Ação pública que visou apenas se prevenir das possíveis insatisfações populares emergidas dos diversos pedintes.

Na capital, a Câmara dos Deputados procurou arrecadar recursos para a criação de obras públicas, fazendo apelos a outros órgãos competentes. Além disso, deputados federais do Ceará foram a Recife cobrar da superintendência da SUDENE medidas mais objetivas frente ao agravamento da situação. Pois, a disponibilidade de recursos da Secretaria de Agricultura do Estado era mínima.
Todavia todas estas articulações políticas do âmbito federal e local, além de serem inoperantes no combate as secas, causaram descontentamento e revoltas advindas da população. Na cidade de Quixeramobim, mil camponeses flagelados, procedentes de cidades vizinhas, fizeram uma rebelião coletiva ao invadirem a cidade em busca de comida e trabalho. Fatos agravados em função dos casos de emigração de retirantes que viajavam em caminhões “pau de arara”, que de precárias condições, trazia riscos eminentes a estes viajantes.

A persistência da seca no ano de 1970 teve conseqüências drásticas ao incapacitar a região cearense de se emancipar de certos flagelos sociais provenientes da crise climática. A desnutrição, por exemplo, foi algo tão grave, que um estudo da UNICEF detectou que 69% das eram são afetadas pelo nanismo. Destas crianças que sobreviviam no sertão, de cada 1.000 nascidas vivas, 340 não chegavam a completar um ano de vida (SOARES, 1984).

Outra conseqüência da seca desta época foi à configuração dada a respeito da má distribuição de terra na região. Dos 2.206.786 estabelecimentos rurais existentes naquele ano, 67,96% ocupavam uma faixa de dez hectares e absorviam 54,46% das pessoas que tinham como atividade à agricultura. Entretanto, tais estabelecimentos ocupavam apenas 6% da área total do Nordeste (MEDEIROS FILHO, 1983).

Além disso, a população das oito capitais nordestinas aumentou de 1950 a 1970, de 1,7 milhões para 4,07 milhões de habitantes. Enquanto nas áreas rurais, no mesmo período, cresceu de forma menor, que foi de 13,2% para 16.3% (GUERRA, 1981). Inchaço populacional nos grandes centros urbanos da região que não trouxe desenvolvimento econômico consolidado. Ao contrário, acarretou em desemprego no meio rural, pauperismo e exclusão social destes retirantes nas cidades. Dados que são importantes aspectos sociais para entender a formação da desigualdade social de Fortaleza, que com o surgimento intenso de novas favelas, que rodeiam os “deslumbrantes prédios” dos bairros da Aldeota e Beira Mar, gera cada vez mais, com a chegada de “novos retirantes”, a reprodutividade da pauperização neste centro urbano.

A Seca Parcial (1976)

Em 1976 ocorreu uma seca parcial que afetou mais o sul da Bahia em relação a outras localidades, mas que não deixou de trazer conseqüências para o estado do Ceará. Este ciclo foi bem menos violento do que o do ano de 1970. Logo, foram adotadas medidas de emergência pelo presidente Geisel visando minimizar o sofrimento do povo nordestino.

Outra vez a Sudene, articulada junto ao Bnb e ao Dnocs, mobilizou recursos financeiros e humanos para auxiliar os indivíduos assolados pela seca. O estado sanitário foi controlado em níveis aceitáveis e a fome foi minimizada. Uma nova ação política foi tomada neste ano, foi à criação do Programa Especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi Árido do Nordeste. Esse programa baseava-se no fortalecimento de pequenas unidades de produção ao formar reservas mínimas de água para abastecimento.

Contudo, a situação no Ceará não teve significativas alterações: com o esvaziamento da SUDENE e do Banco do Nordeste, os incentivos e ações de combate às secas voltam à precariedade. Assim, mais uma vez, uma prática repetida por séculos, de modo emergencial, vem à tona, são os retirantes que foram mobilizados para frentes de serviço para não morrerem de fome. Após a crise de estiagem, houve a volta destes agricultores às suas roças.

Por conseqüência deste ciclo, detecta-se a acentuação da concentração de renda na região. Entre 1970 e 1976, 16% dos mais pobres tiveram sua participação na renda diminuída de 5,2% para 3,8%. Enquanto o 1% mais rico da população, aumentou de 10.2% para 17,2% (SOARES, 1984). O que significa que a reprodutividade do capital no Nordeste tende a atenuar os extremos de desigualdades sociais entre ricos e pobres.

Prolongada Época de Estiagem (1979)

O ano de 1979 foi um período bastante crítico, de baixa pluviosidade, momento onde a crise da seca foi eminente ao local. Este penoso ciclo foi detectado com antecedência, sendo prevista sua duração e conseqüências por dois estudos que foram concluídos antes do início da crise. A primeira previsão foi elaborada pelo Centro Técnico Aeroespacial da cidade paulista de São José dos Campos, que afirmava que a crise se iniciaria em 79, se estendendo até meados de 85 (GIRARDI, 1978). Semelhante observação foi efetivada pelo Ministério da Aeronáutica em 1978, que através da analises da curva de precipitação pluviométrica no Nordeste, chegou a mesma conclusão, o que foi posteriormente enviado em forma de relatórios para o Governo Federal.

Apesar de uma intervenção de modo inovadora no que diz respeito a socorros aos flagelados, o atraso do Governo Federal em suas providencias foram claras em relação às cidades afetadas. O que gerava cada vez mais novas invasões de cidades, cometidas por retirantes. É peculiar, por exemplo, que nos programas de emergência delineados, praticamente não havia mulheres sendo beneficiadas ou exercendo algum tipo de cargo. Uma característica que denota a preferência por homens por parte do Estado, no alistamento de cargos e assistências emergências efetuados na época (CAVALCANTE, 2002). Rapidamente o desencantamento popular veio à tona diante de tais procedimentos governamentais, surgindo daí conflitantes reações por parte dos insatisfeitos cidadãos cearenses:

Por ocasião da seca de 1979, o agricultor Inocêncio Alves da Silva, pai de 11 filhos e contando 51 anos de idade, passava o dia perambulando pelas ruas de Quixeramobim, a 261 quilômetros de Fortaleza, tentando conseguir alimentos para a sua família. Ao ser abordado por um repórter, foi taxativo: quem deixa a mulher e os filhos passarem fome e não tira dos outros, está condenado às trevas do inferno. Um outro, Francisco dos Anjos Pereira, que participou do saque ao armazém da Cobal na mesma cidade cearense, declarou: não existe castigo maior na vida do que ver nossos filhos passando fome, gemendo de um lado para outro (ESTADO DE SÃO PAULO, 22 de Abril de 1979).

Diante de todo este contexto, tem-se por conseqüência um declínio de retirantes atendidos pelos planos emergenciais do Estado, que de 1978 a 1979, sofreu uma queda de 67% de distribuição de feijão, 72% de milho, 81% de arroz e 65% de algodão (CAVALCANTE, 2002). Outra conseqüência foi a constante migração das pessoas do interior do estado, que viajando sempre em busca de melhores condições de vida, impressionou o papa João Paulo II, que numa certa ocasião disse:

Subordinada ao tema das migrações inspira-a o lema interpelação – para onde vais – subentendidas a dolorosa resposta que é um grito da alma. (...) Aonde vais? Procuras a vida, trabalho e comida, ser livre e ter paz (EUCARÍSTICO NACIONAL, 1980).

Conseqüentemente, cidades como Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília sofreram com o “inchaço populacional”, instante em que os retirantes não alcançaram em sua plenitude o objetivo de melhores condições de vida que tanto almejavam. Sofrendo agora de modo diferenciado: ao invés da fome e sede, sofrem com o desemprego, a falta de habitação, péssimas instituições educacionais, etc. Sendo assegurado dessa forma o crescimento desproporcional de favelas nos grandes centros urbanos do país.

1980/1983 – Seca Total

O ano de 1980, apesar de ter tido boas chuvas em seu primeiro mês, em março, a seca já estava configurada na região. Foi um período crítico, de baixa pluviosidade, o que favoreceu a incidência das secas (GUERRA, 1981). Os prognósticos sobre o inverno daquele ano falharam, e a seca atingiu nove milhões de pessoas em todo o Nordeste brasileiro. Essa foi uma época que trouxe falsas esperanças aos agricultores, pois houve boas chuvas em janeiro e fevereiro; o que fez rios encherem diversos reservatórios de água.

Mas de repente tudo se transformou e uma seca legítima que perdurou por quatro anos, logo se intensificou. As plantações foram totalmente perdidas; o que reduziu uma importante atividade agrícola da região, o algodão, que teve uma produção de apenas dois terços do que se esperava naquele ano.

Este flagelo social perdurou em todos os Estados do Nordeste, com maior intensidade no Ceará, o que afetou mais de mil municípios (MEDEIROS FILHO, 1983). A manifestação desta crise era muito irregular, o que não permitia se estabelecer uma previsão exata sobre seu aparecimento. Assim, a ciência e suas possíveis previsões de impacto acerca dos ciclos de seca eram substituídas por crenças populares que tentavam dá respostas frente a toda calamidade social estabelecida.

Em virtude desta situação, Fortaleza sofreu inúmeras invasões por parte dos retirantes da seca em busca de água e suprimentos. A crise se configurou de tal forma, que foi necessário um racionamento d'água para a capital cearense, o que foi amenizado com a criação do sistema de abastecimento d'água Pacoti-Riachão no mesmo ano de 1980. No interior do Estado, a situação era ainda mais alarmante. Nas cidades de Viçosa, Jati, Pedra Branca, Quixeramobim, Caririaçu, Massapê e outras, sucederam-se vários conflitos entre os flagelados das secas e as autoridades locais.

O quadro social gerado deste contexto teve por conseqüência desequilíbrios sociais conflitantes. A esperança de vida estimada para os indivíduos da região, por exemplo, era de 52,6 anos naquela época. Já o encargo econômico representado por jovens com menos de 10 anos era bastante elevado. Sem contar que 71,4% da população local era economicamente inativa (SUDENE, 1985). Fenômeno social que alastrava uma organização social fundada na miséria e pobreza crônicas.

Na Emergência

Esta crise climatéria exigiu uma intervenção mais ampla na região por parte do Governo Federal. Por falta de chuvas, os milhões de coqueiros do litoral e do agreste (tradicionalmente resistentes às secas), não resistiram à falta de água. O Poder Executivo Federal desenvolveu uma ação que foi implementada por diversos órgãos coordenados pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Órgãos como os Ministérios da Cultura, de Saúde, da Educação, e Agricultura, Codevasf, Cobal, Dnocs, participaram deste projeto. Além de contar com o apoio econômico do Banco do Nordeste e do Banco do Brasil (SOUZA, 1988).

No primeiro ano de seca, os agricultores foram distribuídos em algumas modalidades de produção: para famílias de até cinco trabalhadores, o Governo Federal assumia totalmente o custo de mão de obra, para propriedades onde havia dez trabalhadores, o Governo pagava 80% de seus custos, para propriedades com mais de 500 hectares, o órgão público custeava 50% de mão de obra e outros gastos. A partir do ano de 1981 foram incentivados financiamentos aos agricultores. Para ser efetivado, o agricultor tinha que pagar sua dívida em até seis anos e com juros anuais de 7%. Porém, toda esta iniciativa governamental com intuitos de planejamento agrário, não foi suficiente para inibir o avanço das secas. A crise d'água foi tão intensa, que as paliativas e emergenciais ações estatais foram retomadas.

No ano de 83, a Sudene mobilizou diversas frotas de carros-pipa para transportar água às flageladas comunidades do interior cearense. Toda água utilizada era retirada dos grandes reservatórios da capital, no que decorreu na necessidade de racionamento d'água para as residências de Fortaleza.

Logo surgiram denúncias de irregularidades destes planos emergenciais. Francisco Soares Costa, presidente do Centro representativo da cidade de Independência, fez sérias acusações acerca da má distribuição de socorros por parte do Programa de Emergência daquele município: ao invés do programa estatal está cooperando com os agricultores, ele era a partir das preferências pessoais de políticos e de seus respectivos partidos; o que lesava duramente o povo local (TRIBUNA DO CEARÁ, 22/01/1982).

Em Itapajé, acontece o mesmo, houve denuncias de desvio de dinheiros destinado ao combate as secas, que eram destinados aos Balões da Seca (projeto do Governo Federal). Os trabalhadores ficaram sem o pagamento do auxílio deste projeto, e a ação policial para apurar esses fatos se deu de forma bastante tardia. As críticas logo foram estendidas para as cidades de Pacatuba e Quixeramobim.

Seca, Fornalha

Diante de tantas acusações e fragilidades políticas, os flagelados da seca desenvolveram uma radical reação popular. Saques, revoltas e assaltos se tornaram fatos cotidianos nas cidades cearenses nos anos de 81/83. Na cidade de Viçosa, os agricultores, inconformados com a irregular distribuição de auxílios do Programa dos Bolsões, fizeram saques a mercearias e mercados (O POVO, 13/06/1983). Em Quixeramobim, os retirantes saquearam o posto da Cobal e saíram desesperados pelas ruas gritando: é a fome. Em Parambu, das 38 mil pessoas que habitavam o município, pelo menos 10 mil já passavam fome no ano de 1981.

As cidades de Caririaçu, Massapê, Iguatu, e Pacajús passaram por semelhantes situações. Em Fortaleza, flagelados ocuparam a sede da prefeitura para pedirem comida. A seca flagelou mais de um milhão de pessoas no estado, matando, por exemplo, 21 crianças em apenas quatro mêses em Canindé (O ESTADO, 1983).
Anomalia social que trouxe uma peculiar organização social aos cearenses assolados pelas secas. Em função do intenso flagelo, o retirante acabou se adaptando as dificuldades advindas desta variação climática; chegou até a alterar seu paladar. O arcebispo Dom Hélder dizia que os flagelados do interior comiam tudo: cobras, cachorros, gatos e macacos.

O índice de mortalidade infantil do Ceará era o maior do mundo, momento em que as mães largavam seus subnutridos filhos nos hospitais por falta de recursos para sua sobrevivência. Mulheres com fome invadem Pacajús, aumentava-se a incidência de anemia entre crianças da região, subnutrição levava a muitas internações, retirantes pediam comida nas calçadas de Fortaleza, flagelados das secas comiam calangos diariamente.

1987 – Seca Verde

O ano de 1987, ao contrário do prolongado ciclo de 80/83, teve uma curta crise climática no estado, o que ficou conhecida também como seca verde. As chuvas logo cessaram neste ano, impossibilitando que determinadas produções se desenvolvessem (MAGALHÃES, 1991). Apesar da aparente paisagem verde pela região, houve grande queda na produção agrícola e o quadro de desemprego em massa se tornou evidente. Assim, procurou-se refletir de modo descentralizado a nível administrativo acerca dos ciclos de seca.

O Governo do Estado articulou-se junto a União, visando através da Secretaria de Planejamento, negociar recursos que se destinassem as áreas afetadas pela seca na região cearense. Porém, essa interação entre governos estaduais e federais não se efetuou de forma plena, no que decorreu que as necessidades locais não foram atendidas com a devida atenção. Mesmo assim, os gastos federais auxiliaram o Estado diante dos impactos sociais advindos daquela crise climática.

O Governo do Estado do Ceará desenvolveu novas políticas públicas acerca deste fato, como por exemplo, o “Projeto Verde”, que visou desenvolver economicamente a região agraria do estado, cuja execução estava sobre a coordenação da Sudene. Outros projetos foram desenvolvidos diante da consolidação do Plano de Desenvolvimento do Ceará: ações nas áreas de irrigação, possibilidade de reforma agrária, aproveitamento de recursos hídricos e etc.

O que se esperava é que este conjunto de programas determinasse uma nova reestruturação socio-econômica ao povo cearense. Porém, os constantes efeitos das secas voltam a ser tratados com medidas emergenciais por parte das autoridades públicas. Os investimentos públicos do Governo do Estado se tornam escassos por falta do incentivo da União, instante em que as políticas de longo prazo e planejamento são substituídas por ações emergenciais. Assim, foi executado os “Programas de Ações Permanentes de Combate às Secas”, que trouxe numa visão imediatista, típica de ações de médio e longo prazo dos planos governamentais do estado, assegurar os impactos da crise a partir das seguintes ações:
• O recrutamento de trabalhadores para a execução de obras.
• As pequenas propriedades seriam assistidas de modo especial pelas autoridades públicas.
• Distribuição de sementes de plantio e alimentos para as cidades assoladas pela crise.
• Executar a distribuição de renda mínima para as pessoas desempregadas pela seca.
• Abastecimento d'água via carros-pipa para as regiões afetadas pela crise climática.

Estas ações emergenciais que procuravam evitar maiores impactos sociais provocaram intensos movimentos migratórios na região, separando famílias e comunidades inteiras. Conseqüências como esta, levaram a diversos questionamentos destas estratégias governamentais. Era criticado, por exemplo, o seu aspecto social, que emblematicamente postulava uma doação de recursos por parte do Governo aos proprietários de terra. Embora tentasse solucionar o problema em curto prazo, o contexto social advindo dos ciclos das secas continuou perpassando miséria e sede ao povo cearense.

Referências Bibliográficas

BIBLIOTECA NACIONAL, Revista de História da. Rio de Janeiro: Ano 1, Número 6, Dezembro de 2005.

CAVALCANTE, Clóvis de Vasconcelos (org.). A Seca de 1970 – 80: uma avaliação pela Fundação Joaquim Nabuco. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2002.

CEARÁ, Assembléia Legislativa do Estado do. Anais Citados. 3vol. Fortaleza: AL/CE, 1970.

ESTADO DE SÃO PAULO, Jornal. São Paulo: 1979.

EUCARÍSTICO NACIONAL, Congresso. Mensagem de João Paulo II ao Povo Brasileiro. Fortaleza: CEN, 1980.

FROTA, Luciara Silveira de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Brasília: Senado Federal, 1985.

GIRARDI, Carlos (org.). Prognóstico do Tempo à Longo Prazo: relatório técnico Eca. Sao José dos Campos: Centro Técnico Aeroespacial, 1978.

GUERRA, Paulo de Brito. A Civilização da Seca. Fortaleza: Dnocs, 1981.

MAGALHÃES, Antonio Rocha (org.). Respostas Governamentais às Secas: a experiência de 1987 no Nordeste. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1991.

MEDEIROS FILHO, João (org.). Os Degredados Filhos da Seca. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1983.

O ESTADO, Jornal. Fortaleza: 1983.

O POVO, Jornal. Fortaleza: 1981 – 1983.

SOARES, Paulo Gil (org.). Nordestinos. Rio de Janeiro: Rede Globo, 1984.

SOUZA, Itamar de (org.). A Seca do Nordeste: Um Falso Problema. Petrópolis: Vozes, 1988.

SUDENE. Aspectos do Quadro Social do Nordeste. Recife: Sudene, 1985.

______. As Secas do Nordeste. Recife: Sudene, 1979.

TRIBUNA DO CEARÁ, Jornal. Fortaleza: 1982 – 1983.

ASPECTOS SOCIAIS DE LEGITIMIDADE DA UMBANDA



por Dennis de Oliveira Santos

Considerações Iniciais

Fortaleza vê-se mais uma vez envolvida numa grande manifestação religiosa, provinda de sua pluralidade de manifestações sociais. Neste contexto, insere-se o dia 15 de agosto, data ritualizada como o dia da padroeira da cidade, a Nossa Senhora de Assunção. Entretanto, o que se percebe é que a maior manifestação religiosa nesta data não possui caracteres genuinamente católicos. Situação social em que as manifestações populares inserem-se frente a qualquer tipo de mecanismo oficial, a qual enquadra nossos rituais de acordo com certos interesses de grupos hegemônicos.

Surge então aí, a manifestação umbandista, a festa em homenagem a Iemanjá, a mãe d’água. Fato um tanto peculiar, pois neste instante, surge uma imensa massa de fiéis da umbanda, se reunindo num imenso local. A cidade que é oficialmente sacralizada por igrejas e paróquias, cede espaço para uma multidão de pessoas enquanto praticantes de crenças afro-brasileiras, os quais não se vêem rotineiramente circulando na cidade. São inúmeros terreiros que se reúnem, saem da “escuridão” da “informalidade”, para cultuarem suas entidades místicas.

Diante deste contexto, podemos construir indagações para refletirmos acerca de nossas manifestações religiosas: quais os elementos sociais da umbanda podemos detectar como traços da legitimação da cultura popular brasileira? A umbanda pode ser descrita diante das outras religiões, como uma crença que possui uma maior identificação simbólica para as classes populares?

Metodologia de Pesquisa

Este trabalho foi desenvolvido através de uma perspectiva antropológica, visando estudar o homem e suas produções sociais. Esse projeto é baseado em duas ferramentas de estudos aplicados no campo antropológico: a antropologia social e o método etnográfico.

A antropologia social é o estudo dos processos e da estrutura social, seu interesse está centrado na sociedade e suas instituições. Define-a conceitualmente da seguinte forma, “os antropólogos sociais estudam os costumes, instituições sociais e valores dos povos e os modos através dos quais esses se inter-relacionam. Seu interesse central, embora não o único, está nos sistemas de relações sociais” (BEATTIE, 1977, p. 37).

O método etnográfico consiste na descrição e análise das sociedades humanas, visando levantar todo o tipo de dado, para melhor compreender a cultura específica de um determinado grupo. Tal método “consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidades” (LEVI-STRAUSS, 1967, p. 41).

A Reorganização Social dos Negros

Mãos para o alto, olhos fechados, grande concentração “espiritual”. O pai de santo ecoa seus cantos de “oié Iemanjá”, uma senhora totalmente “dominada” por uma “entidade religiosa”. Tudo isso, feito em um grande círculo, em total frenesi. Grande parte da população brasileira, em seus aspectos conservadores, hierarquizados, católicos; em suas concepções retalhadas, minimizadas e totalizantes sobre as atuais crenças afro-brasileiras, nomeiam de forma preconceituosa toda essa manifestação religiosa, em uma simples palavra: a “macumba”. Porém, o que é realmente a umbanda?

A umbanda nasceu de uma necessidade dos descendentes de ex-escravos da Colônia, de reorganizarem suas crenças africanas, que estavam sendo fragmentadas. A religião nasceu juntamente com as grandes cidades e a industrialização, quando o negro se torna uma espécie de sub-proletário, deixando os doloridos dias de pelourinho, para agora enfrentar as desumanas condições de trabalho, de configuração capitalista.

Essa manifestação religiosa possui um cunho social, que consiste numa tentativa de reorganização dos cultos africanos desfigurados sob o nome de macumba. Uma luta social os negros junto a uma sociedade preconceituosa e hierarquizante, na busca de elementos culturais que formem uma manifestação com caracteres afros-descendentes. Algo que não acontece em toda sua totalidade, em função de diversos sincretismos religiosos, com meios católicos e espíritas.

Sincretismo Religioso Afro-Ibérico

A Virgem Maria e Iemanjá: catolicismo e crenças africanas, monoteísmo e politeísmo, Europa e África, branco e negro. Como podem duas concepções culturais tão distintas entre si, se interligarem num momento de manifestação religiosa? Quais fatos configuraram este sincretismo religioso?

A manifestação popular no Brasil Colônia, era, na verdade, um discurso fragmentado, semi-oculto pela oponente visão das elites. Grupo intlectualmente dominante, que, ao longo dos séculos, criou mecanismos que inibissem as manifestações culturais e políticas por parte das classes subalternas. As quais, dispersas, suas manifestações só poderiam ser exercidas a partir do momento em que eles interagissem com elementos culturais da classe dominante; no caso da religião, com o catolicismo. Uma espécie de “mistura cultural”, “caldeirão dos deuses”, pois só a crença disfarçada, fragmentada, incorporada no seio cristão, é que poderia ser manifestada pelos negros escravos.

Domínio de segregação e fragmentação cultural que impediu uma prática efetiva das práticas religiosas trazida dos países africanos. Forma drástica de um processo de aculturação, no qual, os escravos, desgarrados de suas matrizes, para servirem o senhor branco em distantes terras, eram submetidos a toda uma estrutura impositiva, que lhes acarretavam a desenraização de suas originais tradições.

Fatos sociais que demonstram um processo histórico no qual “o negro e o índio, submetidos a esse processo, eram, primeiro, “desumanizados”, ao serem tratados como coisas ou como bichos, enquanto permaneciam boçais, depois re-humanizados ao se converterem em ladinos pelo aprendizado da língua do senhor, pela incorporação compulsória ao novo regime de trabalho, pela adaptação à nova dieta que terminam por integrá-los na nova sociedade e por aculturá-los” (RIBEIRO, 1993, p. 321).

Processo onde se observa a interação entre matrizes européias, ameríndias e africanas, que fundidas entre si, vão formando ao longo das décadas, um novo tecido cultural para a população brasileira. Ato único de ressignificação da nova cultura popular, o que atesta que ela não aceita as oposições clássicas, não aprisiona os símbolos, atribuindo-lhes um único sentido e por isso os reinventa (VANNUCCHI, 1999).

Assim, não há oposição entre orixás e santos católicos na umbanda. Tudo é uma questão de “reagrupar”, sincretizar as duas crenças pré existentes a formação da umbanda. Santa Bárbara é Iansã, o Senhor do Bonfim é Oxalá, Santo Antônio toma a roupagem dos orixás “bons de guerra”. Iemanjá e a Virgem Maria convivem pacificamente, “intercedem juntas” pelos “pobres fiéis”, amenizando toda a carga histórica de imposição e segregação cultural.

O Jeitinho Brasileiro

Qual o elemento que possibilita este sincretismo religioso? A resposta está num procedimento estrutural, quando se trata de articular as disparidades entre a burguesia e a classe assalariada. Um estilo de fazer e lidar com as vicissitudes do quotidiano do país, o famoso “jeitinho brasileiro”.

O “jeitinho brasileiro” é “uma forma especial de se resolver algum problema ou situação de difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de burla a alguma regra ou norma preestabelecida, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade” (BARBOSA, 1992, p. 45). Nesse contexto, os negros necessitavam legitimar a sua crença diante do preconceito das elites. Qual foi a solução? Usar o famoso “jeitinho” para navegar com maior liberdade social diante dos costumes e leis previamente configurados contra essa etnia.

O espiritismo estava cada vez mais em voga dentre as elites, então, os negros, com a cultura do “embramquecimento”, revestiram a umbanda de caracteres espíritas para que suas crenças fossem menos perseguidas pela classe dominante. Fundavam centros espíritas, mas que na verdade eram verdadeiros terreiros. Ação peculiar e criativa para resolver uma difícil situação, o autentico “jeitinho brasileiro”.

Foi intensa a influência da religião espírita sobre a umbanda. Desse sincretismo, a religião de preceitos africanos têm a comunicação com os mortos, a reencarnação, os passes, as adivinhações pela água, a ênfase na caridade assistencial, a lei do karma e os bons e malévolos fluídos. Enfim, todo um feitio espírita, de uma comunidade mais intelectualizada, que foi inserida nos cultos de umbanda.

Sincretismo religioso oriundo de nosso institucionalizado e já rotineiro “jeitinho brasileiro”. O mesmo ato que cria um modo bem peculiar da sociedade brasileira perante as suas religiões. Pois esta população consegue dá um “jeitinho”, integrar diversas manifestações religiosas a seu bel prazer: aos domingos o brasileiro vai rezar na missa, as terças vai ter contato com os espíritos nos centros kardecistas e aos sábados vai “baixar” algum orixá num terreiro.

Concepção Animista

Uma característica marcante dos orixás na concepção umbandista é a de que todos os seus orixás pertencem à natureza. A concepção de mundo é dividido em domínios por suas respectivas divindades: a natureza, o mundo civilizado e o mundo marginal.
Neste contexto, o caboclo, oriundo de uma idéia romântica da natureza, é o sujeito do qual emanam qualidades que se vinculam ao estado selvagem. São eles os personagens altivos, indomáveis. Quando “desce” um caboclo no corpo de um médium, é impossível não reconhecê-lo: solta gritos, bate com as mãos sobre o peito, se torna o verdadeiro senhor do local.

Forma “selvagem” de representação simbólica, que tem o intuito de uma certa aversão a civilização urbana. São seres da natureza, que não se sentem comprometidos com os valores da sociedade do capital. Uma tentativa de transvalorização diante dos conservadores valores, uma “libertação” dos indivíduos diante dos rígidos padrões cristãos em suas manifestações religiosas.

Considerações Finais

Concluí-se que a umbanda traz em sua gênese, diversos traços da cultura popular brasileira, nos quais há uma identificação das camadas populares, havendo uma intensa aglutinação deste setor da sociedade nos cultos umbandistas. Ela denota um não esgotamento de todo o repertório de santos e espíritos existentes, surgindo aí, a diversidade de elementos tão distintos, mas que interagem entre si em nossa cultura. Esta religião está entre brancos, negros e índios – a crença como o paradigma da nação brasileira. Também apresenta outros traços de nossa organização social:
• É uma reformulação social dos negros (ex-escravos), na tentativa de reorganizarem suas crenças africanas que estavam sendo fragmentadas.
• Legitima-se através do “jeitinho brasileiro”, o ato “especial” e institucionalizado que a sociedade possui para resolver alguma emblemática situação socialmente estabelecida.
• Manifestação cultural que agrega todo o tipo de minoria, todo o indivíduo excluído da sociedade, os quais recebem um papel na umbanda.
Podemos dizer que todo o poder religioso dessa manifestação, decorre de uma acepção social; uma inversão simbólica em que os estruturalmente inferiores na sociedade são detentores de um poder mágico particular, provindo da própria condição que possuem.

O significado social da umbanda é inverter os valores da hierarquia que ordena os espíritos. O homem branco, elitista e católico não tem os poderes que possuem seus subalternos. Esses grupos estruturalmente inferiores, ganham por meio da inversão simbólica um poder mágico inigualável. A umbanda forma um poder mágico, o qual nutre os socialmente excluídos (negros, proletários, homossexuais) de certas qualidades e interações sociais, capazes de virar pelo avesso as razões e costumes que legitimam a hierarquia social.


Referências Bibliográficas

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VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira. São Paulo: Loyola, 1999.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

AS SECAS DO CEARÁ E AS REVOLTAS POPULARES: A FORMAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO DAS SECAS



por Dennis de Oliveira Santos

Introdução

O fenômeno da seca é um fato natural de grande repercussão social, ocasionado pela escassez periódica de chuvas ou por sua irregularidade nos meses de inverno na região nordestina. O conhecimento da ocorrência da seca no Estado do Ceará, data do período do início da colonização portuguesa no país e, apesar de ser um fenômeno climático, apresenta-se em toda a sua dimensão também como um fenômeno social que tem exercido profunda influência na estrutura sócio-econômica da região cearense. Quer dizer, antes de tudo, a seca deve ser analisada sobre o prisma de um problema social e político.

A crise da seca no Ceará Imperial possui três ciclos, e de acordo com os trabalhos de intelectuais de época como Fernando Gama, Tomaz Pompeu de Sousa Brasil, Rodolfo Teófilo, dentre outros, estabeleceu-se o seguinte ciclo de secas na região cearense nessa época: 1844-1845, 1877-1879, 1888 (ALVES, 1982).

Vários enfoques foram feitos sobre o fenômeno das secas. Porém, interessa aqui, desenvolver análises de cunho sócio-político, não esquecendo o fato deste também ser um fenômeno climático. A seca constitui, principalmente, um fato social de múltiplas implicações; bem como modificou e ações de seus respectivos atores: governo imperial, elite local e flagelados da seca. A partir de uma perspectiva metodológica dialética (MARX & ENGELS, 2004), lança-se o seguinte questionamento: de que forma se deu a ação do Estado frente ao problema das secas no Ceará em seu início (1844-1888) e no que esse aparelho governamental contribuiu para o surgimento da sociedade civil nessa região?

A Relação Império e Seca

Na época do Ceará Imperial, a conjuntura política nacional era caracterizada pela centralização do Império. Nesse período, o Brasil era dirigido por D. Pedro II, reinado que durou 49 anos, de 1840 até 1888. O país iniciou uma época de relativas transformações e de rápido progresso, momento quando a cultura do café desenvolveu-se através da exportação, fato que também “europeizava” o país com novos costumes (FAORO, 2001). No entanto, as transformações sociais delineadas nesse cenário não conseguiram inibir a herança de uma economia subdesenvolvida e uma estrutura política, que ora parecia mais uma “democracia sem povo”, ora parecia uma clara ditadura.

Com a super valorização da economia cafeeira no sul do país, as províncias do nordeste, com produção do açúcar e a pequena agricultura foram afetados pela concorrência externa oriunda das Antilhas. Desse modo, a região cearense ficou à margem dos investimentos e atenções do imperador, os quais estavam voltados para a cultura cafeeira. Desde esse momento, o Nordeste começou se diferenciado do Sul do país, tornando a província do Ceará um local marginalizado das atenções da política nacional. Exemplo desse aspecto foi o fato da economia açucareira não ser mais rentável, momento quando, cada vez mais, os escravos foram vendidos para a área de produção cafeeira.

1844-1845: Seca e Ciência

A primeira iniciativa do Governo Imperial a respeito da questão da seca deste período foi a criação de uma comissão científica, amparada pelo artigo 1a da Lei 884, de Outubro de 1856, que obrigava ao Governo a “(..) nomear huma comissão de Engenheiros e Naturalistas que explorem o interior de algumas províncias, devendo fazer colleções de alguns produtos naturais para o Museu Nacional e para os das Províncias” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1857: Tomo XVII, Parte I). Outra prerrogativa seria a promoção de estudos sobre as secas. Apesar de alguns trabalhos inéditos referente às secas, a comissão científica pouco produziu para a efetivação de eficientes planos de combate ao problema. Nenhum benefício foi computado para as populações flageladas.

Nos anos de 1844-1845 ocorreu à primeira crise climática do Ceará Imperial, embora a comissão só fosse criada pelo Imperador depois de decorridos dez anos após esta catástrofe. Registrando assim, desde esse período, a ausência de devidas políticas públicas para o enfrentamento do fenômeno das secas (ALVES, 1982).
O primeiro ciclo de secas do período imperial desestruturou as atividades econômicas da província. A partir de então, registrou-se à presença de diversos cronistas, técnicos e naturalistas nas cidades cearenses, confeccionando diversos diários de viagem e estudos técnicos acerca dos fatos decorrentes das crises climáticas. Foram esses relevantes estudos, os quais propunham determinadas soluções para o problema, mas que não foram absorvidas pelo Governo Imperial. Exemplo deste fato nos foi dado pelos relatos do viajante francês Ferdinand Denis. Este europeu visitou a região cearense num período que, progressivamente, foram se tornando, cada vez mais escassos os alimentos para os sertanejos. Não havia mais criação de carneiros e cabras nas fazendas, a terra cearense tornava-se estéril, fato esse que impressionou o referido autor de “Brésil” ao comentar que “(...) a verdadeira história do Ceará, sem dúvida seria a de suas secas” (DENIS, 1847, p. 69).

O interesse de estudiosos pela crise climática na região cearense, data do ano de 1860, quando o também viajante francês Belmar, percorrendo a província fez uma completa descrição do local:

Verdejantes ou áridos, segundo a estação, é anualmente desolada pelo flagelo da seca, que aí faz às vezes horrorosas devastações destruindo a vegetação, os animais e mesmo os homens. Essa circunstância incomoda, impede naturalmente a agricultura e a indústria de se desenvolverem em alta escala (BELMAR, 1861, p. 51).

Além disso, o cronista citado aconselhou que fosse construída uma barragem no Rio Jaguaribe para solucionar o problema. Porém, esse conselho não foi escutado pelo Governo Imperial, embora em 1866, já existisse um açude concluído na região, mas que era de domínio particular. Vale ressaltar que nesse empreendimento foram gastos cinqüenta e quatro contos de réis. Aqui começam os descompassos entre as políticas públicas e as necessidades sociais emergentes pelo acesso à água.

Apesar das poucas fontes documentais existentes acerca dos ciclos de seca que antecedem o episódio de 1877-1879, percebe-se a inadimplência por parte da administração pública nacional referente ao apoio à província do Ceará no combate a crise das secas. Fato esse detectável na relação dos indigentes vítimas da seca de Canindé no ano de 1861, quando o número de flagelados da seca alcançou a marca de 284 pessoas (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1861).


1877-1879: Seca de Fome, Abundância de Doenças

A seca de 1877-1879 marcou profundamente a região cearense através de uma relação direta entre a crise climática e a situação econômica e social. Nesse momento de crise, o trágico se tornou quase cotidiano e, pacífica foi à aceitação por parte da população, sobre o fato de milhares de pessoas morreram de fome e de inúmeras doenças.

Houve por parte do Governo Imperial uma maior atenção ao fenômeno, que foi intensamente divulgado pela imprensa local, que explorando as imagens de desespero, miséria e dor que ocorriam no período de estiagens, contribuiu para mostrar à opinião pública e aos órgãos administrativos a emergência social oriunda desta crise climática. Essa ação possibilitou uma maior divulgação de imagens e argumentos em forma de “discursos da seca” efetuados por membros da sociedade cearense (ALBUQUERUE JÚNIOR, 1994).

A tragédia social oriunda desta terrível seca chegou ao conhecimento do Imperador através de representantes políticos do Nordeste na Corte. Após tomar ciência de todo contexto dramático da província cearense, D. Pedro II inaugurou uma retórica governamental em relação ao problema do nordeste: “(...) não restará uma única jóia na Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome” (REVISTA VEJA, 1981, p. 57).
Daí então, houve várias reuniões e planejamentos com o intuito de levar soluções para as regiões afetadas. No ano de 1877, o Instituto Politécnico do Rio de Janeiro iniciou diversas reuniões com estudiosos na busca de soluções. Os projetos formulados em torno das secas foram, primeiramente, concebidos por Viriato de Medeiros, o qual teceu relevante estudo sobre as causas da crise climática e as possíveis soluções ao problema. Ele defendeu a necessidade de serem instalados postos metereológicos nas áreas castigadas pela seca, pois só conhecendo a regularidade exata das chuvas ocorridas é que se poderia saber das condições necessárias para combater o efeito climático da estiagem. Porém, foi logo criticado por outros técnicos da Corte e seu projeto foi “engavetado”.

O engenheiro André Rebouças foi outro técnico que desenvolveu estudos que sugeriram medidas práticas a serem executadas pelo Governo Imperial. Entretanto, após discussões em Outubro de 1877, no Instituto Politécnico, tais medidas de combate as secas, após terem sido aprovadas em sessão e de terem sido encaminhadas em forma de lei ao governo, o documento foi recolhido e arquivado.

No mesmo ano, em reuniões presididas por Conde d’Eu, foram apresentadas soluções como “(...) construir, quanto antes, no interior da Província do Ceará e outras assoladas pela seca, represas nos rios e açudes nas localidades que para tal fim fossem mais apropriadas ao abastecimento no mesmo interior e prolongar a estrada de Baturité” (PINHEIRO, 1959, p. 66). Adiante, já em 1878, organizou-se outra comissão que elaborou um minucioso relatório sobre a região, mas que logo foi esquecido.
Além do Governo Imperial, o outro ator social envolvido na crise climática do período imperial foi à elite cearense. No decorrer do século XIX, principalmente nos anos de mais intensas secas, as Assembléias Provinciais e Legislativas tornaram-se instrumentos institucionais da elite local, transformando a crise da seca num excelente negócio, indiferente as suas graves conseqüências sociais para a maioria da população. Estava fundada aí, a dominação política baseada na “indústria da seca” (NEVES, 2002).

Esta é a concepção de intervenção pública, a qual estava atrelada aos interesses da elite local. Costume oriundo do cotidiano da política brasileira que não era um costume restrito à província do Ceará, e sim uma prática que se estendia por todos os centros urbanos do Império, manipulando favores e interesses em troca de “barganha” política.

Já no planejamento urbano da época na cidade de Fortaleza, dividida entre bairros da elite e subúrbios, registra-se a divisão de acesso econômico entre o perímetro central e os povoados vizinhos. Pois, cada vez mais ganhava força à concepção de que os subúrbios de Fortaleza eram redutos de acúmulo de desejos e vícios nocivos à sociedade.

Divisão que na seca de 1877/79 evidenciou ainda mais a segregação social, momento onde foram construídas 13 “arraiás” pelo poder público, com a finalidade de afastar cerca de 70.000 “novos e pobres hóspedes” da Fortaleza “Belle Epoque”. Locais esses que foram construídos, preferencialmente, em áreas marginalizadas em relação ao perímetro urbano, segundo o artigo 98, da Resolução número 1818 de 1a de Fevereiro de 1879, que em seu Código de Posturas, parágrafo 7, demonstrava o intuito de tal exclusão:

7a – Está prohibido andar pelas ruas indecentemente vestido, deixando de trazer, pelo menos camisa e calça, sendo aquella por dentro desta (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1878).

A idéia das classes abastarda divulgada, consequentemente, absorvida também pela gestão pública, a visão de mundo de que a migração maciça de retirantes do interior da província tornava-se uma ameaça que deveria ser evitada. Pensava-se que as vítimas das secas traziam vícios contra os quais a sociedade deveria se “armar”, de acordo com o Presidente da província Pedro Leão Veloso:

É rápida a transição do pauperismo à mendicidade, tanto mais fatal, quanto à sombra da miséria se oculta o vicio proveniente da indolência e preguiça, contra que se deve armar a sociedade (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1881).

Como se percebe não havia em Fortaleza espaços reservados ou abertos para acolher os “degredados filhos” da seca. Amparados pelo artigo número 9, do Código de 1879, as classes economicamente ativas compunham uma intervenção urbana que viabilizasse a constituição da ordem, proibindo assim, o reparo ou melhoramento de:

(...) cazas, ainda que de taipa ou palha que [estivessem] dentro de ruas e praças projetadas sendo elles em caso de ruina, demolidas pela camara como no caso couber.

Até o Passeio Público de Fortaleza foi projetado para ser mais um espaço público destinado, especialmente, para o entretenimento da elite local. Fato histórico revelado e impresso pela Câmara Municipal em seu Código de Posturas, que em 1879, proibia:

A entrada de quem não [estivesse] decentimente vestido, do embriagado e dos que se [achassem] illegalmente armados; assim como, o despejo de ourina ou de qual immundicies dentro, ou fóra, junto ao gradil do passeio.

No ano de 1878, Fortaleza abrigava milhares de retirantes em estado de lastimável condição econômica. Raimundo Girão informou que “(...) cedo Fortaleza converteu-se na metrópole da fome” (GIRÃO, 2000, p. 390). Eram centenas de flagelados povoando a capital, o que transformou a cidade dos moldes europeus elitistas, num cenário da mais profunda miséria e calamidade social.

Os jornais locais, por sua vez, denunciavam esta calamidade pública proveniente de uma estrutura política indiferente à pobreza, através das quais as autoridades executavam ações que intensificavam somente o poder da elite local. O que se sucedia no mesmo instante em que se dava diversos falecimentos por sede ou por doenças dos retirantes. Fatos que eram cuidadosamente denunciados pela imprensa cearense:

A indiferença com que a pública administração provincial tem acolhido as tristonhas verdades de que nossos comprovincianos e irmãos estão a essa hora bloqueados pela fome e seca nos sertões, ó, não só uma falta gravíssima, como um crime de lesa-humanidade. (...) Uma administração que deixa seus administrados morrerem de inanição, enquanto lhe sobra meios de socorrê-los e ampará-los é merecedora dos mais veementes e severas recusações (O CEARENSE, 01/01/1877).

Até mesmo Rodolfo Teófilo, que imprimiu em seus escritos, profundos retratos de todo o flagelo desta época, travou uma densa luta contra a varíola na província. Em seu gesto de vacinar os retirantes, indignado-se com a administração pública, desferiu duras críticas ao poder executivo:

Os poderes públicos e os particulares, em breve, esqueceram os lutuosos dias da seca e da peste e não se premuniram contra aqueles flagelos retendo a maior quantidade possível das águas pluviais e vacinando com vacina anti-vaciolica os que nascem. (...) O governo pouco se preocupou com a seca e não tratou de extingui-la. (...) O governo e os particulares continuavam em sua criminosa indiferença a olhar para a permanência da varíola e seca em Fortaleza como um fato muito natural e sem importância (TEÓFILO, 1997, p. 47-58).

No interior da província cearense a situação não era diferenciada. Milhares de pessoas deixavam suas terras e suas cidades para migrarem para a capital, buscando algum tipo de auxílio. Foi com base na miséria que se consolidou o domínio político da elite, onde as ações de combate à seca, nas quais estavam atreladas à dependência dos interesses particulares do poder local. Tais fatos demonstraram que há muito tempo a seca não é apenas um fenômeno puramente climático, mas também gera uma condição sócio-histórica desigual para os atores envolvidos nela.

Assim, a política de combate às secas foi toda perpassada por interesses econômicos e políticos da elite local, que se apropriava do Estado para legitimar as suas finalidades. Estava fundada assim, a “indústria da seca”, que na situação de flagelo da população, executava socorros paliativos e insuficientes para a emergente situação. É o que se pode perceber, quando a Promotoria Pública de Canindé, em 1878, distribui insuficientemente, menos de um litro d’água por dia para as pessoas beberem, cozinharem e tomarem banho:

Distribuição de Água Para as Pessoas:
1a – 37 pessoas 28 litros
2a – 97 pessoas 63 litros
3a - 152 pessoas 96 litros
4a - 221 pessoas 123 litros
5a - 240 pessoas 131 litros
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ:
Arquivo Público, Comissão de Socorros de
Canindé, 1877.

Não só a água, mas os alimentos também eram insuficientes para auxiliar a população:

Resumo de Socorros Distribuídos Em Julho de 1877 em Cascavel:
Número populacional Quantidade distribuída de alimentos:
Residentes – 0273 Milho - 1838,6 l
Emigrantes – 1798 Feijão - 1834,6 l
Total – 2171 Arroz - 917,3 l
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Cascavel, 1877.

Por conseqüência, o quadro de calamidade social a qual Rodolfo Teófilo dizia que “(...) era um quadro sombrio, uma caravana de retirantes. Verdadeiros esqueletos animados, com a pele enegrecida pelo pó das estradas e colocada aos ossos (TEÓFILO, 1997, p. 46)”; ocasionava diversas mortes e êxodos populacionais de algumas cidades:
Comissão de Domiciliários da Província:
Distrito Saíram Ficaram
Lagoa Seca 4560 1470
São Sebastião 6409 1368
Meinho 3919 1309
Fonte: O CEARENSE, 1879.


Comissão de Socorros de Barbalha 1879
Movimento dos Indigentes Tratados de 28 a 31 de Março de 1879

Homens Mulheres Crianças Total
Existiam 7 6 ... 27
Entraram 12 30 ... 67
Falecidos 1 2 4 7
Curados 0 0 0 0
Ficão Existindo 18 38 31 87
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Barbalha, 1879.

(...) 385 mortos na cidade de Maranguape por varíola e fome descreve o Dr. Antonio Leopoldino dos Passos em 16 de Abril de 1877 (O CEARENSE, Abril de 1877).

De 7 a 9 forão sepultados 2054 cadáveres, contando os de 1 a 6 completão 7000 cifra esta a mais elevada de que tenho conhecimento (O CEARENSE, Janeiro de 1879).

O estado da saúde pública neste termo, se não é aterrador, não é por centro dos mais lisonjeiros. São muitos os que padecem de edema, febres intermitentes, e tem aparecido alguns casos de febre tiplóide (PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Comissão de Socorros de Canindé, 1878).

O triste, contristador e lamentável espetáculo, se observou ocasionado pela dura e cruel seca, que vamos atravessando, impõe-se a rigorosa obrigação de socorrer ao zelo de vossa excelência, pedindo-lhe socorro para a classe pobre, aqui numerosissíma, foge, abandona suas propriedades, serviços de muitos anos, e lança-se no horror de uma emigração sem ter recursos para a viagem, nem saber para aonde ir (PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Delegacia de Polícia de Quixadá, 1877).

Mendigos de todas as idades pediam pão pelas portas, cada qual mais andrijoso, mais repellente. (...) Quem fosse a beira-mar seria testemunha de um espetáculo triste, o desfilar do cortejo da fome. Todos os dias ao alvorecer lá iam caminho da pedreira do Mucuripe, milhares de convalescentes, ainda trôpegos, ainda com a pele negra de pústulas mal cicatrizadas, a trocar o trabalho pela ração. Neste préstito de mendigos, viam-se centenas de mulheres ofegantes, suarentas, ao peso da carga, que o governo lhes puzera as costas sem piedade pelo seu estado de abatimento e nenhuma diferença pela fraqueza do sexo (TEÓFILO, 1997, p. 46-49).

Gerava-se, assim, um contexto no qual as ações de socorros públicos eram insuficientes e manipulados pela elite local. Cotidiano político denunciado pela imprensa local em diversos momentos:

Com efeito, S. Estelita deixa a presidência depois de ter esbanjado mais de setecentos contos de réis da verba de socorros públicos, sem ter conseguido socorrer senão as comissões, os comissionados, as subcomissionadas e protegidas. Em toda a Província não existe um só celeiro onde a indigência mitigue fome um dia sequer. (...) Mas S. Excelência via de braços cruzados, os especuladores atalharem essa idéia generosa em seu proveito, se assim nos podemos exprimir, sem ter a energia dos embargar-lhes os passos (O RETIRANTE, Outubro de 1877).

Assim, o governo provincial detinha ineficientes medidas de socorros à população. Todo este contexto de inadimplência política gerou, por conseqüência, pedintes e miseráveis, retirantes que rondavam pelas ruas, que pereciam de fome, se transformassem em sujeitos de ações coletivas frente à situação. Da atitude silenciosa e cabisbaixa que esperava a esmola, à atitude de gritos e conflitos que exigiam uma maior ação das autoridades: o que ocasionou muitos saques e revoltas (CÂNDIDO, 2005).

Após décadas de fome, os flagelados agiram no sentido de aterrorizarem os defensores da ordem, fato que esvaziava a retórica paliativa da caridade, pois começaram a existir situações de conflitos com relatos de torturas e de assassinatos entre fazendeiros e retirantes. Destes fatos, restam alguns versos publicados no Jornal O Retirante em outubro de 1877, em que um fazendeiro (de apelido Pirão) foi acusado de assassinar um retirante que estava roubando em sua propriedade algumas raízes de macaxeira:

Oh! Retirante lá do sertão,
Guardai as costas, olha o Pirão
Lá da caverna, do Mondubim,
Um retirante já levou fim por macaxeira.
Que todos dão, leva-se ali bolos na mão.
Será criminoso quem procede assim?
Que diga o Pirão lá do Mondubim,
Já que de história de macaxeira
Saber não quer o chefe Nogueira (O RETIRANTE, 1877).

Em 15 de Outubro de 1877, na cidade de Baturité, uma multidão de quatro mil pessoas reuniu-se em frente à casa do tesoureiro da comissão de socorros para receber donativos. Porém, o agente limitou-se a distribuir alimentos a poucas pessoas. Logo, o povo se lançou sobre a casa, invadindo-a, agarrando sacos de farinha e outros gêneros alimentícios. No dia seguinte, outro conflito foi desencadeado: a população percebendo a insuficiência de alimentos para serem distribuídos na cidade, invadiu os armazéns disponíveis, tendo certo confronto com o corpo de polícia de Fortaleza, o qual foi deslocado para o local (CÂNDIDO, 2005). Na capital cearense a situação não é diferenciada de Baturité, que com o impacto da chegada em massa dos retirantes, bastaram poucos meses para que os conflitos se intensificassem entre os imigrantes e as autoridades locais.

1888: Seca Curta e Fatal

São poucas as fontes documentais a respeito do último ciclo de secas da época do Ceará Imperial, ao contrário da abundância de relatos oriundos dos anos de 1877/79. Até porque foi um curto período, o qual foi amenizado com algumas estratégias governamentais em relação ao problema da estiagem.

Existem notícias, por exemplo, que após a grande crise de 1877/79, no ano de 1880, novos projetos voltaram a serem efetuados com o intuito de construir açudes nas localidades de Lavras e de Quixadá. Em 1884, o engenheiro Jules Revy recebeu a autorização para iniciar a construção de um açude em Quixadá, mas dois anos depois foi paralisado por ordem do Governo Imperial. Após algumas retomadas e novas paralisações, este açude só foi concluído em 1906, já na época da República Velha.

Apesar desse projeto estatal não ter tido êxito em sua finalidade, o Governo Imperial elaborou um projeto paralelo de construção da estrada de ferro em Baturité. Esse empreendimento, além de viabilizar a conexão e troca de produtos econômicos entre o interior do Estado e a capital, também possuía o intuito de amenizar os conflitos constantes entre autoridades e flagelados; atores sociais insatisfeitos com toda a calamidade oriunda do ciclo de 1877/79. A execução da ferrovia empregou centenas de retirantes, ocupando-os com ofícios e dando-lhes mínimas condições econômicas para o sustento de suas famílias.

Conclusão

Detecta-se que a crise da seca no Ceará Imperial foi um fato que ocasionou forte impacto sócio-econômico para a sociedade cearense, tendo por conseqüência, ciclos memoráveis de crises climáticas que assolaram de forma calamitosa os pobres agricultores do interior da província.

O flagelo social dos sertanejos foi decorrente de problemas em relação as secas que não receberam soluções precisas ou definitivas por parte do Governo Imperial. Pois, com a marginalização da província às atenções da política nacional, não houve o devido enfrentamento da crise social com a execução de obras.
Sobre a administração instaurada por D. Pedro II no combates as secas, ficou a conclusão de que não foram executadas grandes obras e que diversos projetos apresentados por técnicos foram arquivados. Essas foram vicissitudes de uma conjuntura nacional que configurou, no âmbito sócio-político, uma exclusão das províncias do Nordeste: não havendo o devido enfrentamento da crise social nos grandes ciclos de seca.

O combate às secas ou a política de enfrentamento do problema era toda perpassada pelos interesses da elite econômica e política, a qual se apropriava dos órgãos públicos para legitimar a conhecida “indústria das secas” através de manipulação de interesses ou de ilícitas vantagens que obtinham as custas do sofrimento das vítimas das secas. Os retirantes diante de todo descaso governamental não se calaram, acabavam por se rebelar, tornando-se ativos atores sociais ao se indignarem com a cúpula local.

O Ceará, que possui raízes históricas acerca das secas, desde o período colonial até os atuais dias, está em constante luta contra um modelo concentrador que prejudica a região, e que, além disso, mascara os sofrimentos dos “degredados filhos” deste solo. É de suma relevância centrar atenções e colocar como questão primordial às desigualdades oriundas dos ciclos das secas no semi-árido cearense, dos privilégios que a conjuntura política legitima, das ilícitas vantagens que certos grupos obtêm à custa do sofrimento da maioria da população.


Referências Bibliográficas

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As Relações Entre Tempo e Espaço na Produção Cinematográfica do Século XXI



por Dennis de Oliveira Santos

Resumo

Esse trabalho visa refletir como se dá à representação social da condição pós-moderna na produção cinematográfica do século XXI: discute-se como essa nova interação social reconfigura o sentido do tempo e do espaço na sociedade contemporânea. A partir da compreensão do paralelo entre o imaginário advindo dos filmes e esse tipo de sociabilidade atual, propõe-se traçar uma reflexão de como esses dois itens (tempo e espaço) geram uma intensa fase de transformações sociais, pensando nesse contextos sobre suas construções e conseqüências sociais no mundo globalizado.

Palavras chave: cinema, pós-modernidade, tempo, espaço, século XXI.

Abstract

This work aims at to reflect as if it gives the social representation of condition of postmodernity in the cinematographic production of century XXI; arguing as this new social interaction it reconfigures the direction of the time and the space in the society contemporary. From the understanding of the parallel the imaginary one happened of the films enters and this type of current sociability, to trace a two reflection of as these itens (time and space) generate an intense phase of social transformations, reflecting there on its constructions and social consequences to the globalization world.

Keywords: movie, postmodernity, time, space, century XXI.

Considerações Iniciais

O mundo como delírio social, o espaço urbano desarticulado, dilatado, repetitivo. O tempo tornado efêmero, programado e tarifado. Eis aí o atual ambiente globalizado, essencialmente constituído pela pós-modernidade, instante em que os usos e significados do tempo e espaço alteram-se em função da flexibilidade que este novo modo de sociabilidade impõe. Essa mudança, baseada em uma intensa fase de inovações tecnológicas e a prática da descartabilidade das coisas, gera por conseqüência, a diversificação dos valores da sociedade que, em sua essência, encontra-se em vias de fragmentação.

Diante desse contexto, as produções cinematográficas do século XXI, que são sucessos de bilheterias mundiais, acenam de certa forma para esta nova interação e significação que o homem tece acerca do tempo e do espaço. Sendo assim, visa-se através de uma perspectiva sociológica, baseado numa compreensão do paralelo entre o imaginário oriundo dos filmes, e a condição pós-moderna, analisar os significados sociais das relações entre o tempo e espaço que se articulam na trama das produções cinematográficas.

Metodologia

Adota-se metodologicamente os estudos da sociologia compreensiva em função dessa tendência das ciências sociais ser a mais adequada para o caso em estudo. Tal escolha deve-se ao fato de que este procedimento metodológico busca compreender interpretativamente a ação social dos indivíduos e explicá-la em seus efeitos e significados intencionais de seus agentes.

Para essa tendência, o objetivo essencial da sociologia é a captação da relação de sentido da ação humana, ou seja, chegar a conhecer um fenômeno social quando o compreende como fato carregado de sentido que aponta para outros fatos significativos. Esse sentido, quando manifesta-se, é o que dá a ação o seu caráter concreto, quer ele seja do âmbito político, religioso ou econômico. Nesse contexto, cabe ao sociólogo ter como objetivo a compreensão desse processo, desvendando os nexos causais que dão sentido a ação social em determinado contexto. Ou seja, a sociologia compreensiva efetiva-se metodologicamente na busca de compreender interpretativamente a ação social dos indivíduos e explicá-los em seus efeitos e significados intencionais de seus agentes (WEBER, 1992).

No caso em questão, propõe-se analisar como os significados acerca do tempo e espaço são efetuados pelas personagens dos filmes, percebendo as referências diretas e indiretas que os mesmos fazem sobre o tema. Foram escolhidas duas produções cinematográficas que atingiram os altos índices de bilheterias, sendo um do gênero maravilhoso (SENHOR DOS ANÉIS, 2001) e outro do gênero realista (TERMINAL, 2004). Para uma maior compreensão e embasamento teórico a respeito do atual momento globalizado, utiliza-se também, os estudos sobre a pós-modernidade, procurando a partir de certas reflexões teóricas delinear características concernentes ao tempo (HARVEY, 1994) e ao espaço (AUGÉ, 1994) desta época.

Refletindo Acerca do Imaginário

Para analisar as produções cinematográficas em questão, deve-se considerá-las como produções artísticas advindas de construções imaginárias acerca da realidade. Porém, o que vem a ser imaginário? As imagens que os homens tecem sobre as coisas não são fatos concretos em si, o que ocorre na atividade cognitiva. A imagem que é obtida a respeito de um objeto não é o próprio objeto, mas apenas uma faceta que se conhece sobre esta coisa externa ao homem. Esta imagem é marcada pelos sentimentos e experiências que o ser humano obtêm em relação ao mundo externo.
Sendo assim, elas são mais uma representação simbólica sobre a realidade, cerceada de intenso subjetivismo ao invés de serem descrições exatas da realidade, as quais consigam captá-la através de um procedimento exclusivamente criterioso e racional.

As representações são símbolos que representam a realidade ao ser, sem ter necessariamente, um vínculo exclusivo com seu campo empírico captado. Daí surge o imaginário, que está em constante liberdade, o qual rompe com os limites do real e propicia uma nova concepção ou abordagem sobre questões que ela representa. Fundamenta-se essas afirmações quando percebe-se que:

O real é a interpretação que os homens atribuem à realidade. O real existe a partir das idéias, dos signos e dos símbolos que são atribuídos à realidade percebida. As idéias são representações mentais de coisas concretas e abstratas (LAPLANTINE, 2003, p. 12).

Assim, o imaginário é uma das interpretações simbólicas do mundo, que possui o diferencial da possibilidade de criar relações e imagens que não são provenientes diretamente das percepções sensoriais. Vislumbrando-se essa premissa de forma conceitual, alega-se que:

O imaginário faz parte da representação como tradução mental de uma realidade exterior percebida, mas apenas ocupa fração do campo da representação, à medida que ultrapassa um processo mental que vai além da representação intelectual ou cognitiva (LAPLANTINE, 2003, p. 25).

Por ser uma representação simbólica, o imaginário concretiza-se na construção de símbolos, os quais serão buscados nas falas das personagens dos filmes. Sendo assim, é na polissemia e polivalência simbólica advinda do imaginário é que se encontra um espaço aberto para associar determinadas ações, falas e sentimentos a determinados símbolos representativos da realidade. E será essa a estratégia tomada na análise dos filmes: verificar nas falas e ações das personagens, os símbolos que esses sujeitos tecem para representarem a realidade, no caso, a interação com o tempo e espaço.

A Aceleração do Tempo em O Senhor dos Anéis

Baseado numa obra literária de sucesso global entre o público infanto-juvenil (TOLKIEN, 2001), o filme Senhor dos Anéis sucede-se num cenário fantástico; a Terra-Média, local repleto de criaturas mágicas, as quais convivem num constante duelo pela busca do poder que um anel dá a tais seres.
Com a ajuda de uma sociedade de amigos e aliados, Frodo (personagem principal), sai em uma corajosa e arriscada aventura, na qual ele terá a missão de resgatar e destruir o lendário anel, objeto que dota de poderes sobrenaturais aquele que o possui, a ponto de este ter a possibilidade de dominar toda a Terra-Média.

À caça de Frodo, estão os servos de Sauron (o vilão da história que busca o poder do anel), o então conhecido Senhor do Escuro. Se Sauron recuperar o anel, toda a Terra-Média estará condenada, ficará a mercê das imposições do poder do senhor das trevas (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).

Analisando os símbolos tecidos nessa trama cinematográfica, o anel, que foi criado por uma personagem vilã e maléfica, de modo tirano e contra a vontade dos povos da Terra-Média (o que abala a harmonia deste mundo), representa a onipresença congênita da modernidade, que desarticula e super acelera o tempo.

No imaginário do filme, cada vez que o poder do anel espalha-se sobre os povos, altera suas formas de vida e suas terras. Analogicamente, este simbólico trecho cinematográfico, expressa a situação social persistente na modernidade, momento em que, com uma amplitude global, o tempo é super acelerado, articula-se em proveito de sistemas que giram sobre si mesmos segundo a lógica particular da pós modernidade. É o que se percebe na fala de uma personagem, comentando acerca da expansão do poder deste valioso objeto, que analogicamente, também representa para o mundo dos homens, o advento desse novo tipo de sociabilidade, que é expresso por um personagem da trama, “o mundo está mudado. Eu sinto isso na água. Eu sinto isso na terra. Eu farejo isso no ar. Muito do que já existiu se perdeu, pois não há mais ninguém vivo que se lembre” (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).

Os usos e significados do tempo mudaram com a transição para o sistema de acumulação flexível. Vivemos nas últimas décadas um intenso momento acerca da compreensão sobre tempo-espaço; o que gera um grande impacto nas práticas econômicas, políticas, e na vida social e cultural dos indivíduos. A transição para esta condição pós moderna, que traz novas formas tecnológicas e organizacionais, contribui para a desagregação do mundo urbano e da identidade de seus sujeitos. Novamente nos fala a personagem que inicia narrando o filme:

Na terra de Mordor, nas chamas da Montanha da Perdição, Sauron, o Senhor do Escuro, forjou em segredo um Anel Mestre para controlar todos os outros. E, nesse anel, ele derramou sua crueldade, sua malícia e sua vontade de dominar todas as formas de vida. Um anel para todos governar. Uma por uma as Terras Livres da Terra-Média submeteram-se ao poder do Anel (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).

Este poderoso anel apresenta a aceleração do tempo de giro, que desorganiza o espaço urbano sob os golpes da modernidade, a cidade desarticulando-se sob a força das prioridades de circulação do capital. Tudo agora é programado: desloca-se o centro comercial, alcança-se maior produção de trabalho com mudanças organizacionais, tais como a subcontrolação efetuada por sistemas como o fordismo e a empregabilidade. Sinais de que todas as coisas são atualmente suscetíveis a serem tarifadas, programadas a partir de suas inscrições num tempo limitador, pois:

Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por outro lado, a manipulação do gosto e da opinião, seja tornando-se um líder da moda ou saturando o mercado com imagens que adaptem a volatilidade a fins particulares. Isso significa, em ambos os casos, construir novos sistemas de signos e imagens, o que constitui em si mesmo um aspecto importante da condição pós moderna, aspecto que precisa ser considerado de vários ângulos distintos (HARVEY, 1994, p. 259).

Este horizonte da modernidade estende-se, dilata-se a ponto de ser perdido de vista. A aceleração do tempo de giro na produção envolve acelerações paralelas na troca e no consumo. Por conseqüência de tal contexto, há a perca de identidade dos sujeitos envolvidos neste ambiente. Para os trabalhadores assalariados, todo este fluxo de informações e racionalizações técnicas, implicou numa intensificação dos processos de trabalho e uma desqualificação e re-qualificação ao atendimento das novas necessidades do trabalho.

Ao longo do tempo, os símbolos impostos pela super valorização tecnocrática, de uso descartável, rápido e superficial, vai aos poucos impondo uma violência simbólica que tende a desagregar os típicos hábitos e estilos de vida rotineiros na sociabilidade dos sujeitos (BOURDIEU, 1998). Isso é perceptível por exemplo, na imposição social efetivada pelas fontes midiáticas, que induzem as pessoas a consumirem produtos alheios às suas atuais necessidades, o que vai gradativamente gestando um novo padrão de consumo a este ser. Fatos sociais que são como o anel da história, um poderoso aparelho que visa mutilar a polissemia da multiplicidade cultural humana, em nome da centralidade do domínio tecnológico.

É assim na história da saga pelo poder do anel, momento em que a narradora da trama, assustada com a possível perda de suas terras e costumes tradicionais de seu povo, em função da expansão perversa dos poderes do objeto tão cobiçado, comenta: “e algumas coisas que não deveriam ser esquecidas se perderam. A história se tornou lenda. A lenda se tornou mito” (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).
Fato que conceitualmente é detectável acerca desta gradativa perda identitária que os homens sofrem com a intensificação dos “tempos modernos” nas caóticas cidades:

As pessoas se acham projetadas em sistemas cuja escala é desproporcional à extensão de suas percepções e às capacidades de seus corpos. Sente-se impotente, aturdido, negado diante dos grandes conjuntos residenciais de Pequim ou do Cairo, nos campos sem medida da Champagne nivelado pelas escavadeiras, nos hipermercados das novas cidades, nos trevos gigantes das estradas (CHESNEAUX, 1996, p. 21 – 22).

Despedaça-se então determinadas funções, desarticula-se certas práticas tradicionais na sociedade, como por exemplo, os rituais religiosos, o almoço familiar feito em mesa com todos os seus membros reunidos e outras formas de sociabilidade em nome de subsistemas autônomos.

O meio urbano perde suas qualidades topográficas, agora tudo é marcado por placas, determinado por out-doors. A constância da tarifação do tempo a qual todos devem adequar-se. Tempo é agora sinônimo de dinheiro, as ações executadas no corre-corre do dia a dia são compreendidas como deveres a serem rapidamente executados, sem muita reflexão acerca de tais ações, como demonstra o diálogo entre Frodo e o mago Gandalf, ao reencontrarem-se depois de um bom tempo:

Frodo: Está atrasado.
Gandalf: Um mago nunca se atrasa, Frodo Bolseiro. Nem chega adiantado. Chega exatamente quando quer (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).

No domínio da produção de mercadorias, o efeito da ênfase nos valores de instantaneidade e descartabilidade dos objetos criados e consumidos pelos homens (HARVEY, 1994), legitima a dinâmica de uma “sociedade do descarte”, instante em que as ações e objetos não possuem mais valor, não são mais mecanismos que tragam identidade social aos homens.

Vislumbrando empiricamente essa tese, pode-se detectá-la numa breve comparação entre o sistema de sociabilidade contemporânea e o da época da Idade Média, momento histórico anterior ao atual processo civilizatório. Houve uma profunda transformação social ocorrida em poucos séculos no mundo ocidental, e o habitante desse ambiente é um sujeito sem fixas raízes culturais: vive num contexto social fora do universo humano no qual nasceu.

Vê coisas estranhas ao seu cotidiano, que surgem advindas do processo de globalização mundial, coisas desconhecidas, gestadas em outra parte de globo terrestre, porém, mesmo diante desta situação alienígena a si, esse indivíduo acaba incorporando tal objeto a sua vida. O universo apresenta-se a seus olhos cada vez mais neutro, técnico, mais autônomo, uma estrutura que progressivamente perde as marcas de interação humana.

Ao contrário dessa mecanização da atual sociabilidade, onde o seu habitante tende ao individualismo e isolamento social, o camponês da Idade Média, não imaginava-se fora de sua terra natal: o centro do universo era a sua aldeia local. Ao contrário do homem moderno, que convive com costumes estranhos a si, desprovido de uma história, o homem medieval observa as coisas de modo sentimental, subjetivo, ligado diretamente a sua existência.

Enquanto nas aldeias tudo estava sempre interligado a existência dos seres, o homem de hoje fala de eventos da história, e que não existem unicamente para ele, em um mundo “desencantado”; desprovido de qualquer explicação oriunda de mitos religiosos. É essa relação social que instituiu a visão de mundo enquanto um agregado de objetos independentes e impessoais de seus observadores (FOUREZ, 1995).

Condições sociais decorrentes do processo de desencantamento do mundo. A humanidade aboliu um universo habitado pela institucionalização do sagrado, das explicações mágicas, espirituais, excepcionais, e adequou-se a um tempo racionalizado, mecânico, material, proveniente da intensificação da técnica e das revoluções científicas. O mundo foi desprovido de mitos e deuses, toda essa mágica concepção deu lugar ao desenvolvimento de formas organizacionais reguladas pela burocratização e racionalidade, pois “os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais (WEBER, 1979, p. 182).

Quais as conseqüências dessa intensa racionalização operada na sociabilidade humana, através da técnica e ciência supervalorizadas? Essa razão que institucionaliza a impessoalidade e burocratização acaba minimizando a liberdade das ações dos homens, tendendo a vacilar a serviço da dominação e instrumentalização das relações humanas.

O suposto triunfo da razão, prometido desde o século XVIII, inicialmente pela Filosofia das Luzes (Iluminismo), não foi capaz de constituir um meio adequado para abolir os mitos e magias. Essa própria razão tornou-se um mito que estabiliza-se de modo contraditório na sociedade: é a degenerância da ração científica, que pode ser verificada por exemplo, na vontade racional de exterminar uma parte da humanidade através de bombas-atômicas. Fatos que marcam uma crise social rumo a um horizonte totalizado pela não interferência humana em seu meio.

Distante das promessas de ampla prosperidade e felicidade humana, sociedade contemporânea estabiliza a cooptação de seus sujeitos pelo organizado sistema capitalista, que manipulando os sujeitos, tendem agora a uniformização, a inautenticidade, ao anonimato e a desumanização. Ações que visam alargar o consumo passivo de mercadorias padronizadas, negando aos homens qualquer possibilidade de imaginação ou sensibilidades individuais. Portanto, a transformação societal por meio da extensa valorização científica, equivale afirmar que:

A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. (...) Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 114).

Diante desse diagnóstico acerca das conseqüências da cientifização do mundo contemporâneo, pelo menos possuímos a possibilidade de um conhecimento mais claro das nossas próprias condições sociais de vida em relação aos povos que antecederam esse processo civilizatório? Eis a resposta:


O selvagem tem um conhecimento incomparavelmente maior sobre suas ferramentas. (...) A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos (WEBER, 1979, p. 165).

É a ação do jogar fora bens produzidos, ser capaz de descartar rapidamente valores, abandonar estilos de vida, extinguir relacionamentos estáveis e duradouros. É a sociedade do tempo acelerado, do grande fluxo de informações da internet, que num clique, se faz um upgrade e, logo, o que era atual torna-se passado, fadado a ser “deletado”. Ambiente social em que também as relações amorosas não são mais estáveis, definem-se em breves noites e “baladas” de afoitos ficantes. Modelo de sociabilidade que molda tanto os jovens, que faz Frodo comentar: “nunca tivemos aventuras nem fizemos nada inesperado” (SENHOR DOS ANÉIS, 2001). O que significa que:

O colapso do dinheiro como meio seguro de representação dos valores criou por si só uma crise de representação no capitalismo avançado. Ele também foi reforçado, ao mesmo tempo em que lhes acrescentou seu peso considerável, pelos problemas de compreensão do espaço-tempo antes identificados (HARVEY, 1994, p. 269).

Relação com o tempo que forçam as pessoas a conviverem com a descartabilidade, perspectiva que fornece um contra senso e a diversificação de valores, o que deixa a sociedade em vias de fragmentação. É o instante da perda de sólidos valores, era do fim das ideologias, meio social que não mais valoriza a fala e, sim, as imagens. O mago Gandalf, consciente desse poder (no caso do filme, dos conseqüências do uso do anel), afirma:

As inscrições na lateral começam a apagar. A escrita, que de início era clara como uma chama vermelha desapareceu quase totalmente. Um segredo que agora somente o fogo pode revelar (SENHOR DOS ANÉIS, 2001).

Os Não-Lugares em O Terminal

O filme O Terminal coloca o aeroporto como microcosmo do mundo. Neste local há pessoas de todo os quatro cantos do planeta, que possuem diferentes culturas, com os mais diversos tipos de costumes. Viktor Navorski, personagem principal, descobre que dentro de um terminal de aeroporto, pode caber toda uma vida. Enquanto voava para os Estados Unidos, acontece um golpe de estado em seu país de origem, deixando-o em uma situação bem peculiar.

Conforme é informado pelo oficial de segurança, Viktor não pode ser considerado um refugiado e nem um turista, em função do governo norte-americano não reconhecer a nova situação do país em conflito. Ele não pode entrar nem sair e é obrigado a esperar dentro do aeroporto, acabando por fazer desse local a sua residência. Filme que possui o roteiro inspirado num caso real de um expatriado iraniano que morou há 15 anos no aeroporto em Paris, o Charles de Gaulle (TERMINAL, 2004).

O aeroporto, assim como as auto-estradas, shoppings centers e viadutos, por serem apenas locais de rápida circulação e não possuírem uma identificação humana, impressa a estes locais, são denominados de não-lugares (AUGÉ, 1994). Eis o local onde Navorski faz sua moradia: num terminal de aeroporto. Este ambiente é designado para a rápida passagem. Milhares de pessoas passam apressadamente, uma ao lado da outra, sem nenhuma possibilidade de sociabilidade entre elas. Instante em que o espaço torna-se dilatado, repetitivo, seriado. Os lugares tornam-se banalizantes: são construções industriais de lojas em grande série, tudo ao máximo automatizado, o que impede cada vez mais a possibilidade de interferência humana em tais locais.

Cadeiras postas em fileiras, as áreas de refeições se sucedem de uma a uma, de terminal em terminal, de contingente em contingente, como se fossem reproduzidas por um mesmo módulo informatizado. Assim, despedaça-se as possibilidades subjetivas de interação em tais locais em nome da monopolização dos sistemas autônomos e informatizantes. Como demonstra o filme, no momento em que os oficiais do governo norte-americano, para não desarticularem a autonomia de seu sistema de migração e imigração, acabam impondo uma ordem a Navorski, no qual, ele, oficialmente, não teria mais uma identidade social: “não se qualifica como exilado, refugiado, para proteção temporária, questões humanitárias, diplomática ou de trabalho. Não se qualifica para nada disso. Você neste momento é simplesmente inaceitável” (TERMINAL, 2004).

Então, o espaço da modernidade organiza-se em rígidos sistemas, que, aos olhos dos quais a subjetividade humana, a livre relação identitária dos indivíduos, são aniquiladas; tornam-se títeres do funcionamento mecânico, automatizado. As manifestações humanas acabam sendo degredadas, desprezadas e desqualificadas em nome da manutenção da ordem tecnocrática.

Por esta singular inversão em torno da relação entre homem e lugar, designa-se assim, o espaço como um não-lugar, representando-o como um local de rápida circulação. Gradativamente, a pós-modernidade desagrega questões de cunho histórico, relacional e identitário que constitui a relação entre os homens e seus espaços (AUGÉ, 1994). O que enfraquece os elementos que traçam uma identidade sócio-cultural dos indivíduos. Como é o caso de Navorski, que escuta a seguinte afirmação de um oficial do aeroporto: “No momento, você é cidadão de lugar nenhum. Mesmo se lhe déssemos novos papéis, teria de aguardar nova classificação diplomática” (TERMINAL, 2004). Ações propensas à rigidez burocrática, que reduz as pluralidades subjetivas dos cidadãos urbanos. O que fundamenta a alegação de que a reconfiguração dos espaços para não-lugares pela pós-modernidade, demonstra que:

Ele também não concede espaço à história, eventualmente transformando em elemento de espetáculo, isto é, na maior parte das vezes, em textos alusivos. A atualidade e a urgência do momento presente reinam neles. Como os não-lugares se percorrem, eles se medem em unidades de tempo (AUGÉ, 1994, p. 95).

Há então o desvio do olhar, onde existem espaços nos quais os indivíduos sentem-se espectadores sem verdadeiramente estarem envolvidos com a natureza deste espetáculo. Aí há apenas oportunidades para os negócios, o mercado confeccionando produtos que podem ser vendidos em massa instantaneamente nesses não-lugares. Ações que desempenham o aspecto vital do “deus-mercado”, que através de seus representantes, dita ao inusitado morador do aeroporto que “só há uma coisa para fazer aqui senhor Navorski: compras” (TERMINAL, 2004).

O que atesta que os mecanismos de produção e reprodução dos “(...) não-lugares reais da supermodernidade, aqueles que tomamos emprestados quando rodamos na auto-estrada, fazemos compras no supermercado ou esperamos num aeroporto o próximo vôo para Londres ou Marselha” (AUGÉ, 1994, p. 88), obedece em particular à acumulação flexível do capital em nome dos grandes núcleos financeiros.

Não há mais um lugar próprio para a criação de valores entre os indivíduos, locais que criem vínculos identitários entre sujeito-local, como o valor simbólico da igreja ao religioso por exemplo, que tem ali, toda uma vida marcada através de símbolos e rituais: batismo, crisma, etc. O atual ambiente, composto de imensos shoppings e aeroportos desfalece as possibilidades subjetivas dos seres, que agora, apresentam-se a estes como locais de rápida circulação e consumo. Não existe mais o sujeito social, apenas consumidores, sempre suscetíveis a novas mudanças em seus padrões de gostos, impostos pelos interesses mercadológicos. Indivíduos aptos a todo instante, como no filme, a fazerem apenas uma coisa em suas vidas: compras.

Caracterização da Condição Pós-Moderna

Ambos os filmes, através de suas representações diretas ou indiretas referidas pelas personagens, refletem simbolicamente a condição pós-moderna que caracteriza a sociedade de nossos dias, reconfigurando o sentido de tempo e espaço nesse ambiente societal.

Esta, é uma tendência aplicada à partir de 1950, nos diversos âmbitos da atividade humana: arquitetura, filosofia, música, cinema, sociologia, etc. Através de uma sociabilidade em que o cotidiano é programado pela tecnociência, o modo de vida dos sujeitos vão sendo drasticamente alteradas: uso de alimentos transgenicamente modificados, microcomputadores, remédios desenvolvidos à partir de processos biotecnológicos, etc. Sistema social que engrena rapidamente novos papéis sociais e estilos de vida aos homens (SANTOS, 2006).

Essa condição social, através de seu grande desenvolvimento tecnológico, satura a sociedade com informações e serviços advindos da internet e mercadorias em geral. Lidamos mais com a estética desses produtos ao invés de observarmos o seu conteúdo. Situação que levanta uma relevante observação: no mundo atual, o problema acerca do conhecimento não é a ausência da propagação e acesso às informações, pois isso é demasiadamente efetivado por diversas fontes midiáticas, mas sim a qualidade dessas informações propagadas.

Em nenhum período histórico da humanidade houve uma circulação e troca de informações de modo tão ágil como na atualidade: computadores e televisões levam em questão de segundos, notícias de uma inóspita parte do globo terrestre, a uma certa população, a qual está distante geograficamente do local daquele acontecimento.
Porém, segundo estimativas oficiais, um jovem americano, por exemplo, ao completar 14 anos, que assistiu em média 15 mil horas de tv, não sabe informar que depois da Segunda Guerra Mundial, combater o comunismo era a prioridade da política externa de seu país. Na Inglaterra, uma pesquisa mostrou que um terço dos jovens ingleses não sabe quem foi Winston Churchill. No Brasil, outra pesquisa revelou que a população paulista acima de 16 anos possui um grande desconhecimento acerca de informações geográficas de seu país: 61% delas não sabem qual é a capital do Rio Grande do Sul, 92% não sabem quantos estados compõem o país (DIMENSTEIN, 1997).

Fatos que demonstram que não se deve cair no deslumbramento tecnológico, efetuado de modo inconsistente e acrítico. De pouco adianta gerar “megas” e “giga-bytes” de informações, sem está contido nesse processo, um conhecimento crítico sobre o mundo. Essa postura, uma das habilidades intelectuais mais necessárias é ao mesmo tempo dificultada de ser praticada, devido às interpretações à priori, existentes na sociabilidade pós-moderna, o que impede que novas perspectivas e descobertas sejam adotadas.

Assim, essa condição social contemporânea tende a sempre está moldando os níveis societais, o que configura uma sociedade ávida pelo consumo, que tende a reduzir-se pela moral hedonista: valores calcados no prazer do consumismo de mercadorias, efetivado por sujeitos extremamente individualizados. Situação social que define-se na navegação em acontecimentos caóticos e fragmentários, onde há a total aceitação do efêmero e do descontínuo nas relações sociais.
Como nos filmes, no caso do anel por exemplo, que esmaga uma multiplicidade de estilos de vida em nome do monopólio do poder, ou no outro caso, em que o indivíduo insere-se num espaço repetitivo e desarticulado. Enfim, a pós-modernidade condiciona contraditórios valores como: des-referenciação do real, des-construção da filosofia, des-politização da sociedade e des-substancialização do sujeito. O que demonstra que:

Na pós-modernidade, o eterno é repartido no instante. A idéia de carpen die é o instante da cristalização da eternidade. As gerações vivem este instante, desprendem-se do político, do religioso, do trabalho, etc. Não há mais projeção do futuro religioso e político, mas a intensidade traz o gozo, aproveitar o que a ocasião se lhe apresenta (MAFFESOLI, 2002, p. 2).

Considerações Finais

Detecta-se como a produção cinematográfica do século XXI traz à tona a compreensão do tempo-espaço na condição da pós-modernidade, onde há uma interferência nos usos e significados do espaço e tempo. Ela reflete, através de um imaginário construído acerca da realidade, como a aceleração e desarticulação do tempo nos dias atuais, obedecem às prioridades da acumulação flexível e ao fortalecimento dos sistemas autônomos.

Além disso, traz a concepção do espaço como um não-lugar. Que é um local que se torna repetitivo, seriado, de rápida passagem; que acabam banalizando-se, o que gera a mecanização das atividades humanas, em nome da estruturação de rígidos sistemas e ao ordenamento de particulares acumulações de capital, que são efetuadas por grandes sistemas empresariais.

Assim, fragmenta-se as possibilidades subjetivas de interação humana com o tempo e espaço. A rigidez burocrática vai reduzindo cada vez mais a pluralidade de relações identitátias dos indivíduos que, ao reconfigurar e dar novo sentido ao local e ao seu tempo, desagrega questões de cunho relacional dos homens; inibindo-os gradativamente de seus elementos de valores históricos e subjetivos.

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