quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Estado, Sociedade e Democracia na Grécia Antiga: reflexões de Aristóteles na obra A Política


Estado, Sociedade e Democracia na Grécia Antiga: reflexões de Aristóteles na obra A Política


Dennis de Oliveira Santos


O Livro III do livro A Política de Aristóteles argumenta sobre a teoria da cidadania, ele é o centro de gravidade da Política, momento onde se estuda as formas de governo de uma cidade e suas constituições. O livro é provindo de uma investigação sobre o domínio de ação do legislador, é mediadora entre a introdução à natureza da cidade, nos livros I e II, e as aplicações legislativas nos Livros IV, V e VI.
Aristóteles introduz agora a cidade como um composto, uma multidão diversificada, e que cada cidadão é uma parte. A cidade é por Além da natureza da cidade, o legislador tem que conhecer a politeia, (regime, constituição, ordem constitucional, forma de governo, regime constitucional). Se a unidade política fosse apenas o resultado de um processo biológico, o teórico apenas teria que relatar o processo de crescimento, saudável ou doentio, e de corrupção. Mas a cidade-estado também resulta dos atos libertadores dos fundadores originais e dos fundadores permanentes que são os legisladores e os governantes, e os cidadãos (homens livres) que participam na vida política.
A comunidade de cidadãos é comparada a uma comunidade de marinheiros numa embarcação. Em ambas ocorre uma divisão de funções, cuja combinação de dinamismo e ordem é necessária à segurança na viagem. Analogamente, os cidadãos, embora desiguais, têm como tarefa comum à segurança da comunidade. Neste contexto, os homens livres tinham a função de atuarem nos cargos públicos, os escravos de exercerem os trabalhos braçais, as mulheres cuidarem do lar e etc.
Quanto à pergunta sobre o que é um cidadão, Aristóteles procede por eliminação de critérios. A residência no território é critério insuficiente porque estrangeiros e escravos também a podem possuir. O direito de processar e ser processado judicialmente são insuficientes; pode ser assegurado a estrangeiros mediante tratado. A descendência materna ou paterna também não basta; os fundadores da cidade acabariam por não se enquadrar no critério. Aristóteles exclui da cidadania as mulheres, as crianças, os anciãos que ultrapassaram um limite de idade, os estrangeiros residentes e os escravos. Esta listagem de exclusões mostra que Aristóteles tem dificuldades em criar um critério de cidadania. Aliás, acaba por admitir que a ascendência por via paterna é importante para se ser cidadão. A resposta não é teoricamente muito satisfatória, nem talvez fosse pretendida como tal. Aristóteles descobriu que, em ciência política, a noção de perfeição é singularmente vazia, sendo mais importante investigar de que modo a natureza comum do político se atualiza de modo diferente nas inúmeras variantes constitucionais.
Esta nova problemática da tensão entre natureza da cidade e forma dos regimes políticos é a resposta teórica aos materiais de 158 constituições helênicas. Em vez de procurar fazer coincidir natureza e forma para obter uma "cidade ideal" - desejável, mas impossível de estabelecer - Aristóteles verifica que as imperfeições dos regimes resultam da falta de protagonismo dos cidadãos livres e iguais que deveriam constituir o grupo predominante na vida política.
Se diferentes tipos humanos buscam a felicidade de diversos modos, forçosamente possuem diferentes formas de governo. Cada polis é uma multidão com tipos humanos extremamente diversificados; segundo Aristóteles apenas um pequeno grupo de indivíduos responsáveis atingirá uma estatura moral completa ou perfeita; outros serão bons cidadãos, sem serem forçosamente homens de bem: outros nem possuem os requisitos necessários para a cidadania. No grau inferior desta escala estarão os escravos por natureza. A variedade de tipos humanos resultante é enorme e mostra-nos uma sociedade pluralista. Para efeitos de descrição, podemos concentrar-nos nos dois pólos opostos desta escala social: o indivíduo responsável e o escravo.
Como é possível a diferença de tipos humanos reconciliar-se com a idéia de unidade da natureza humana? Tendo a escrava capacidade de virtude, como se distinguirá do homem livre? E se é humano, como pode deixar de ter razão? A sua solução reside na descrição de caracteres em termos de predominância de um dos componentes. A diferença entre seres humanos é de espécie, e não de grau nem de gênero. Aristóteles sustenta a igualdade da natureza humana, a par de diferenças de personalidade. A desigualdade evidente entre homem livre e escravo não significa uma diferença de natureza. A natureza é idêntica para todos devido à razão, mas a disposição interna desta é extraordinariamente diversa. O escravo por natureza é um caso de máximo afastamento das virtudes e éticas, e na mente de Aristóteles, também as mulheres e crianças se afastam desta culminância.
Quanto ao homem bom, Aristóteles segue a mesma metodologia de descrição do caráter em termos de predominância de um dos três componentes da alma: desejo, vontade e razão. Aristóteles é resolutamente a favor da vida política, ou vida ativa, como meio de alcançar a felicidade.
A cidade não existe apenas para viver; justifica-se se proporcionar uma vida do bem; caso contrário também poderia existir uma cidade de escravos, ou de animais. Quando um grupo realiza a excelência humana, deve tornar-se representativo da cidade e criar um regime político em que conflua a natureza e a melhor forma. O melhor regime será aquele em que os grupos governantes exibirão a excelência humana, em particular as virtudes éticas em vários graus de atualização.
Para Aristóteles, é a ciência política, a ciência da conduta do homem em sociedade que engloba a ética, ciência da conduta individual do homem. A Política de Aristóteles resume os preceitos finalistas da sua Ética: “Todos aspiram a viver bem e à felicidade. Toda a ação humana está orientada para o bem e para a felicidade (eudaimonia) que se define como criatividade da alma dirigida pela virtude perfeita. A virtude mais humana consiste na busca do bem e da felicidade”.
O homem atinge a felicidade através da virtude. Mas uma vez que as excelências ou virtudes humanas apenas são realizáveis na esfera da sociedade política, a cidade tem que preocupar com a virtude. A cidade não é apenas uma comunidade de lugar, nem um recinto amuralhado cujo fim seja evitar a injustiça e facilitar as trocas comerciais. O fim da comunidade política é assegurar aos cidadãos a vida boa. A vida boa é conforme à virtude, “Não só se associam os homens para viver, senão para viver bem (caso contrário haveria cidades de escravos e de animais. E isto é impossível porque estes não participam da felicidade”. Por “vida boa” não se deve entender abundância de bens materiais que caracteriza o que correntemente se chama a sociedade de consumo, ou mais vulgarmente, a boa vida. Os elementos apresentados sublinham que para viver bem “a cidade é uma comunidade de homens livres”.
Apesar de tudo, estas respostas parecem demasiado teóricas para resolver os problemas da vida política. Aristóteles tinha outras conclusões disponíveis para os seus silogismos.
Uma segunda possibilidade seria conceber a cidade-estado segundo o modelo da monarquia mundial presente na formação do império helênico. Que sucederia se aparecesse um indivíduo ou um grupo de indivíduos superiores pelas virtudes? Aristóteles indica que se um homem destacasse acima de todos os outros, não deveria ser tratados segundo as regras correntes; seria “como um deus entre os homens”, referindo explicitamente a identidade da felicidade com a atividade virtuosa, explora a hipótese de o poder supremo ser o mais excelente dos bens porquanto permite realizar ações nobres, mas rejeita a hipótese: a excelência inicial seria perdida com a violência exercida para obter o poder.
A vida ativa da cidade helênica de homens livres é, pois, o modelo definitivo de existência humana em sociedade. A idéia teórica é convertida em critério para julgar a cidade e as categorias podem ser transferidas: o homem excelente tem o seu paralelo na idade excelente; o homem feliz na cidade feliz. A felicidade da cidade é alcançada quando os cidadãos estão treinados de modo a que todos os estratos da existência humana estejam desenvolvidos. Cada cidade-estado helênica deve ter um fim em si mesma e unificar as suas partes sob a ação da vida ativa do indivíduo responsável. Pensar o indivíduo, a cidade e o divino sob o modelo da auto-suficiência, e no quadro do cosmos, é um modelo que melhor transmite a grandeza e os limites do próprio Aristóteles.
Na análise empreendida nos três primeiros livros, Aristóteles recorreu a importantes distinções metodológicas. Após analisar a natureza da cidade nos livros I e II, a observação das evoluções constitucionais fê-lo criar a nova categoria de forma da cidade. No livro III, o regime adquiriu essa função de ser a forma da cidade perante a matéria que são os cidadãos. Contudo esta segunda relação levanta duas novas dificuldades. Por um lado existem indivíduos que pertencem, mas não participam na vida da cidade. São membros da cidade, mas não são cidadãos segundo a forma. Por outro lado, admitida a distinção entre o homem de bem e bom cidadão, só em circunstâncias excepcionais, poderia haver coincidência entre ambos. Para evitar a quebra da filosofia das coisas humanas, e a tensão entre ciência ética e ciência política cujas conseqüência prática seria entregar o governo aos expedientes sofísticos ou aos tiranos e remeter o indivíduo para a existência amorfa e apolítica - Aristóteles solicita ao legislador que se aproxime da natureza, através da legislação. É preciso a todo o custo sustentar a filosofia da cidade como a comunidade em que o homem pode realizar a sua natureza de modo pleno. O problema reside em saber se as categorias de Aristóteles descrevem este processo.
Aristóteles conhece as dificuldades de transformação das categorias em tópicos fora do âmbito original, que a sua exposição é o melhor guia de resolução das dificuldades. Se as categorias forem aplicadas a uma polis, a politeia será a forma e os cidadãos a matéria? Todos, então, deverão ser cidadãos? Ou só os que participam na governação e votação? Numa tirania ou oligarquia seria impossível, porque os homens livres perdem o direito de votar ao contrário do que sucede em democracia. Admite que definir o cidadão como o participante no processo de decisão só vale em democracia, mas não insiste demasiado neste ponto. Quer reter o regime como a forma da cidade e os cidadãos como matéria. Mas surge, assim, o novo problema de uma cidade mudar de identidade cada vez que muda de regime e o caso perturbador de o homem de bem poder ser mau cidadão ou o bom cidadão cumpridor das leis, ser um indivíduo moralmente detestável. A tensão entre as exigências da ética e da política tornava-se incomportável e a unidade da análise ético-político ficaria destruída. Mas apesar de tudo isto, Aristóteles não modificou o paradigma de análise. Porquê? Que motivos tinha para assim proceder?
Aristóteles estava consciente que o regime constitucional (politeia) não pode ser construído como essência ou forma da sociedade porque não possui estatuto ontológico próprio; é apenas uma rede de instituições políticas que existe no tempo histórico. Acresce que Aristóteles expôs claramente que a forma política da cidade é apenas uma fase de um ciclo mais amplo constituído por realeza, aristocracia, oligarquia, tirania e democracia.
Aristóteles é um filósofo: interessa-se pela estrutura e não pela história da sociedade. Admite um modelo proveniente das investigações históricas, mas insiste em articular a essência da polis.
A partir do cap.6 do Livro III, é introduzido o exame dos tipos de ordem constitucional mediante uma nova definição de politeia: “Um regime pode ser definido como a organização da cidade no que se refere a diversas magistraturas e, sobretudo, as magistraturas supremas; em qualquer cidade, o elemento supremo é o governo, e o governo é o próprio regime”. A parte determinante numa democracia será o povo, numa oligarquia o grupo dirigente, e assim sucessivamente. Um segundo critério de diferenciação entre regimes é o interesse comum: “os regimes que se propõem atingir o interesse comum são retos, na perspectiva da justiça absoluta; os que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos e todos eles desviados dos regimes retos”. Ao invés das constituições justas, as injustas apenas olham aos interesses particulares dos governantes.
Em regra os ricos são poucos e os pobres muitos, sendo a democracia e a oligarquia os dois regimes mais freqüentes. Na prática, existe um terceiro grupo de indivíduos que intervém nos conflitos políticos - os virtuosos - sejam eles mais ricos ou mais pobres. Cada um destes três grupos funda a sua pretensão de governar a cidade num critério parcial de justiça; os pobres falam em nome da liberdade, os ricos devido à posição econômica, os virtuosos pelo desempenho da excelência: é inevitável o conflito político entre estas pretensões.
Mas perante interpretações parciais, afinal o que é a justiça? Segundo Aristóteles, consiste na igualdade de tratamento para os iguais e no tratamento desigual para os que têm méritos desiguais. Quando um destes princípios parciais de justiça é aplicado isoladamente, cria conflitos: os possuidores de riquezas tendem a generalizar a sua desigualdade relativa; os que são iguais em liberdade de nascimento, generalizam esta sua característica. O conflito decorrente entre ricos e pobres não pode ser resolvido em favor exclusivo de uma das partes, nem minorado por uma solução contratual. A visão ambiciosa de Aristóteles exige que a cidade seja mais do que uma associação fundada para a segurança e defesa e para a troca de bens. A cidade é uma comunidade de aldeias e de famílias, baseada na amizade entre seres humanos e a amizade apenas se alcança através da realização do supremo bem. A realização de ações dignas na cidade exige a participação dos indivíduos virtuosos; não é um luxo; é indispensável para contribuírem com as excelências de que a cidade carece. A fidelidade e a consistência do método de Aristóteles pode ser bem apreciada nesta elevação do problema politológico do conflito de classes - que ele reconhece - ao nível da consideração ontológica sobre os fins da existência humana.
Uma vez que não existe uma solução final dos conflitos sociais, as soluções possíveis assentam no estabelecimento de uma ordem justa. O que é justo beneficia a cidade e cada cidadão. “A justiça é própria da cidade já que a justiça é a ordem da comunidade de cidadãos e consiste no discernimento do que é justo”. A justiça deve presidir e regular as relações sociais entre os membros da cidade, de modo a conferir fundamento e coesão e à vida social. A justiça política que é própria do homem articulado em sociedade, tem dois aspectos: a obediência às leis, às quais se deve ajustar a conduta dos cidadãos: e o critério de igualdade (isonomia) não para todos, senão para os iguais, já que a desigualdade parece justa, e é, com efeito, não para todos, senão para os desiguais.
Tal como a natureza impulsiona os seres humanos a agruparem-se em comunidade, as leis fundamentais também possuem uma origem na natureza. Aristóteles distingue entre leis escritas visionadas e promulgadas pelo legislador; e leis não escritas ou consuetudinárias; pronuncia-se pela superioridade das leis não escritas, mais seguras e fortes, porque a força da lei deriva do hábito e do costume e ganha vigor com o decorrer do tempo. A supremacia da lei resultante do tempo é fonte de força para a comunidade e de estabilidade da constituição. Por isso mesmo, é melhor ser governado por leis do que por homens, sempre sujeitos às paixões. Em termos atuais, estranhamos a referência da desigualdade, mas notamos que a base de idéia de justiça é a supremacia da lei, fundada na natureza.
A realeza surgiu como forma primitiva de governo quando um homem preeminente em virtude impunha as suas qualidades de fundador da cidade com proveito comum. Quando este governo virtuoso fez crescer a prosperidade, surgiu um grupo de barões que não aceitavam submeter-se e que criaram uma república aristocrática. Quando esta classe de aristocracia degenerou e enriqueceu a expensas da população, surgiram oligarquias sem o sentido da honra. A concentração da riqueza nas mãos de um só indivíduo gerou a tirania. A tirania, enfim, cedeu o lugar aos regimes dominados pela plebe urbana, massas de homens livres apenas no nome, mas sem a virtude de saberem governar em democracia. Aliás, devido ao crescimento histórico da massa populacional, a democracia tornou-se a única constituição aceitável na área helênica.
Diante desta breve análise da política aristotélica, podemos moldar uma breve comparação de tal sistema político com o sistema dos contratualistas. A modernidade, assim, definiu a política como atividade essencialmente burocrática-administrativa, ou seja, como atividade técnica separada do corpo da sociedade civil. Enquanto isso, Aristóteles define a política como atividade de fins éticos que prime pela felicidade e realização de todos os cidadãos participantes do Estado.
O Estado dos contratualistas passa a ser uma instância outra do corpo dos cidadãos. Para a antigüidade ateniense o Estado era "a universalidade de seus cidadãos". (Aristóteles, Op. Cit., Livro III) Na modernidade o coletivo dos cidadãos é uma instância completamente diferente do Estado. Os cidadãos ficaram restritos à esfera do mundo privado, enquanto o Estado ficou responsável pela do mundo público. Os cidadãos são chamados apenas para votar a cada período de tempo, enquanto no sistema aristotélico os homens se dedicavam exclusivamente e assiduamente na eleição e participação nos cargos públicos. Assim, o Estado moderno, toma uma posição totalemente oposta a visão ética e igualitária de Aristóteles, pois enquanto instância, torna-se autônoma do corpo dos cidadãos, ouve os cidadãos e então volta a ser a instância que cuida da "coisa pública", em nome daqueles. O Estado moderno é essencialmente representativo.

Referências Bibliográficas:

ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Hemus, 2005.