terça-feira, 19 de outubro de 2010

AS SECAS DO CEARÁ E AS REVOLTAS POPULARES: A FORMAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO DAS SECAS



por Dennis de Oliveira Santos

Introdução

O fenômeno da seca é um fato natural de grande repercussão social, ocasionado pela escassez periódica de chuvas ou por sua irregularidade nos meses de inverno na região nordestina. O conhecimento da ocorrência da seca no Estado do Ceará, data do período do início da colonização portuguesa no país e, apesar de ser um fenômeno climático, apresenta-se em toda a sua dimensão também como um fenômeno social que tem exercido profunda influência na estrutura sócio-econômica da região cearense. Quer dizer, antes de tudo, a seca deve ser analisada sobre o prisma de um problema social e político.

A crise da seca no Ceará Imperial possui três ciclos, e de acordo com os trabalhos de intelectuais de época como Fernando Gama, Tomaz Pompeu de Sousa Brasil, Rodolfo Teófilo, dentre outros, estabeleceu-se o seguinte ciclo de secas na região cearense nessa época: 1844-1845, 1877-1879, 1888 (ALVES, 1982).

Vários enfoques foram feitos sobre o fenômeno das secas. Porém, interessa aqui, desenvolver análises de cunho sócio-político, não esquecendo o fato deste também ser um fenômeno climático. A seca constitui, principalmente, um fato social de múltiplas implicações; bem como modificou e ações de seus respectivos atores: governo imperial, elite local e flagelados da seca. A partir de uma perspectiva metodológica dialética (MARX & ENGELS, 2004), lança-se o seguinte questionamento: de que forma se deu a ação do Estado frente ao problema das secas no Ceará em seu início (1844-1888) e no que esse aparelho governamental contribuiu para o surgimento da sociedade civil nessa região?

A Relação Império e Seca

Na época do Ceará Imperial, a conjuntura política nacional era caracterizada pela centralização do Império. Nesse período, o Brasil era dirigido por D. Pedro II, reinado que durou 49 anos, de 1840 até 1888. O país iniciou uma época de relativas transformações e de rápido progresso, momento quando a cultura do café desenvolveu-se através da exportação, fato que também “europeizava” o país com novos costumes (FAORO, 2001). No entanto, as transformações sociais delineadas nesse cenário não conseguiram inibir a herança de uma economia subdesenvolvida e uma estrutura política, que ora parecia mais uma “democracia sem povo”, ora parecia uma clara ditadura.

Com a super valorização da economia cafeeira no sul do país, as províncias do nordeste, com produção do açúcar e a pequena agricultura foram afetados pela concorrência externa oriunda das Antilhas. Desse modo, a região cearense ficou à margem dos investimentos e atenções do imperador, os quais estavam voltados para a cultura cafeeira. Desde esse momento, o Nordeste começou se diferenciado do Sul do país, tornando a província do Ceará um local marginalizado das atenções da política nacional. Exemplo desse aspecto foi o fato da economia açucareira não ser mais rentável, momento quando, cada vez mais, os escravos foram vendidos para a área de produção cafeeira.

1844-1845: Seca e Ciência

A primeira iniciativa do Governo Imperial a respeito da questão da seca deste período foi a criação de uma comissão científica, amparada pelo artigo 1a da Lei 884, de Outubro de 1856, que obrigava ao Governo a “(..) nomear huma comissão de Engenheiros e Naturalistas que explorem o interior de algumas províncias, devendo fazer colleções de alguns produtos naturais para o Museu Nacional e para os das Províncias” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1857: Tomo XVII, Parte I). Outra prerrogativa seria a promoção de estudos sobre as secas. Apesar de alguns trabalhos inéditos referente às secas, a comissão científica pouco produziu para a efetivação de eficientes planos de combate ao problema. Nenhum benefício foi computado para as populações flageladas.

Nos anos de 1844-1845 ocorreu à primeira crise climática do Ceará Imperial, embora a comissão só fosse criada pelo Imperador depois de decorridos dez anos após esta catástrofe. Registrando assim, desde esse período, a ausência de devidas políticas públicas para o enfrentamento do fenômeno das secas (ALVES, 1982).
O primeiro ciclo de secas do período imperial desestruturou as atividades econômicas da província. A partir de então, registrou-se à presença de diversos cronistas, técnicos e naturalistas nas cidades cearenses, confeccionando diversos diários de viagem e estudos técnicos acerca dos fatos decorrentes das crises climáticas. Foram esses relevantes estudos, os quais propunham determinadas soluções para o problema, mas que não foram absorvidas pelo Governo Imperial. Exemplo deste fato nos foi dado pelos relatos do viajante francês Ferdinand Denis. Este europeu visitou a região cearense num período que, progressivamente, foram se tornando, cada vez mais escassos os alimentos para os sertanejos. Não havia mais criação de carneiros e cabras nas fazendas, a terra cearense tornava-se estéril, fato esse que impressionou o referido autor de “Brésil” ao comentar que “(...) a verdadeira história do Ceará, sem dúvida seria a de suas secas” (DENIS, 1847, p. 69).

O interesse de estudiosos pela crise climática na região cearense, data do ano de 1860, quando o também viajante francês Belmar, percorrendo a província fez uma completa descrição do local:

Verdejantes ou áridos, segundo a estação, é anualmente desolada pelo flagelo da seca, que aí faz às vezes horrorosas devastações destruindo a vegetação, os animais e mesmo os homens. Essa circunstância incomoda, impede naturalmente a agricultura e a indústria de se desenvolverem em alta escala (BELMAR, 1861, p. 51).

Além disso, o cronista citado aconselhou que fosse construída uma barragem no Rio Jaguaribe para solucionar o problema. Porém, esse conselho não foi escutado pelo Governo Imperial, embora em 1866, já existisse um açude concluído na região, mas que era de domínio particular. Vale ressaltar que nesse empreendimento foram gastos cinqüenta e quatro contos de réis. Aqui começam os descompassos entre as políticas públicas e as necessidades sociais emergentes pelo acesso à água.

Apesar das poucas fontes documentais existentes acerca dos ciclos de seca que antecedem o episódio de 1877-1879, percebe-se a inadimplência por parte da administração pública nacional referente ao apoio à província do Ceará no combate a crise das secas. Fato esse detectável na relação dos indigentes vítimas da seca de Canindé no ano de 1861, quando o número de flagelados da seca alcançou a marca de 284 pessoas (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1861).


1877-1879: Seca de Fome, Abundância de Doenças

A seca de 1877-1879 marcou profundamente a região cearense através de uma relação direta entre a crise climática e a situação econômica e social. Nesse momento de crise, o trágico se tornou quase cotidiano e, pacífica foi à aceitação por parte da população, sobre o fato de milhares de pessoas morreram de fome e de inúmeras doenças.

Houve por parte do Governo Imperial uma maior atenção ao fenômeno, que foi intensamente divulgado pela imprensa local, que explorando as imagens de desespero, miséria e dor que ocorriam no período de estiagens, contribuiu para mostrar à opinião pública e aos órgãos administrativos a emergência social oriunda desta crise climática. Essa ação possibilitou uma maior divulgação de imagens e argumentos em forma de “discursos da seca” efetuados por membros da sociedade cearense (ALBUQUERUE JÚNIOR, 1994).

A tragédia social oriunda desta terrível seca chegou ao conhecimento do Imperador através de representantes políticos do Nordeste na Corte. Após tomar ciência de todo contexto dramático da província cearense, D. Pedro II inaugurou uma retórica governamental em relação ao problema do nordeste: “(...) não restará uma única jóia na Coroa, mas nenhum nordestino morrerá de fome” (REVISTA VEJA, 1981, p. 57).
Daí então, houve várias reuniões e planejamentos com o intuito de levar soluções para as regiões afetadas. No ano de 1877, o Instituto Politécnico do Rio de Janeiro iniciou diversas reuniões com estudiosos na busca de soluções. Os projetos formulados em torno das secas foram, primeiramente, concebidos por Viriato de Medeiros, o qual teceu relevante estudo sobre as causas da crise climática e as possíveis soluções ao problema. Ele defendeu a necessidade de serem instalados postos metereológicos nas áreas castigadas pela seca, pois só conhecendo a regularidade exata das chuvas ocorridas é que se poderia saber das condições necessárias para combater o efeito climático da estiagem. Porém, foi logo criticado por outros técnicos da Corte e seu projeto foi “engavetado”.

O engenheiro André Rebouças foi outro técnico que desenvolveu estudos que sugeriram medidas práticas a serem executadas pelo Governo Imperial. Entretanto, após discussões em Outubro de 1877, no Instituto Politécnico, tais medidas de combate as secas, após terem sido aprovadas em sessão e de terem sido encaminhadas em forma de lei ao governo, o documento foi recolhido e arquivado.

No mesmo ano, em reuniões presididas por Conde d’Eu, foram apresentadas soluções como “(...) construir, quanto antes, no interior da Província do Ceará e outras assoladas pela seca, represas nos rios e açudes nas localidades que para tal fim fossem mais apropriadas ao abastecimento no mesmo interior e prolongar a estrada de Baturité” (PINHEIRO, 1959, p. 66). Adiante, já em 1878, organizou-se outra comissão que elaborou um minucioso relatório sobre a região, mas que logo foi esquecido.
Além do Governo Imperial, o outro ator social envolvido na crise climática do período imperial foi à elite cearense. No decorrer do século XIX, principalmente nos anos de mais intensas secas, as Assembléias Provinciais e Legislativas tornaram-se instrumentos institucionais da elite local, transformando a crise da seca num excelente negócio, indiferente as suas graves conseqüências sociais para a maioria da população. Estava fundada aí, a dominação política baseada na “indústria da seca” (NEVES, 2002).

Esta é a concepção de intervenção pública, a qual estava atrelada aos interesses da elite local. Costume oriundo do cotidiano da política brasileira que não era um costume restrito à província do Ceará, e sim uma prática que se estendia por todos os centros urbanos do Império, manipulando favores e interesses em troca de “barganha” política.

Já no planejamento urbano da época na cidade de Fortaleza, dividida entre bairros da elite e subúrbios, registra-se a divisão de acesso econômico entre o perímetro central e os povoados vizinhos. Pois, cada vez mais ganhava força à concepção de que os subúrbios de Fortaleza eram redutos de acúmulo de desejos e vícios nocivos à sociedade.

Divisão que na seca de 1877/79 evidenciou ainda mais a segregação social, momento onde foram construídas 13 “arraiás” pelo poder público, com a finalidade de afastar cerca de 70.000 “novos e pobres hóspedes” da Fortaleza “Belle Epoque”. Locais esses que foram construídos, preferencialmente, em áreas marginalizadas em relação ao perímetro urbano, segundo o artigo 98, da Resolução número 1818 de 1a de Fevereiro de 1879, que em seu Código de Posturas, parágrafo 7, demonstrava o intuito de tal exclusão:

7a – Está prohibido andar pelas ruas indecentemente vestido, deixando de trazer, pelo menos camisa e calça, sendo aquella por dentro desta (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1878).

A idéia das classes abastarda divulgada, consequentemente, absorvida também pela gestão pública, a visão de mundo de que a migração maciça de retirantes do interior da província tornava-se uma ameaça que deveria ser evitada. Pensava-se que as vítimas das secas traziam vícios contra os quais a sociedade deveria se “armar”, de acordo com o Presidente da província Pedro Leão Veloso:

É rápida a transição do pauperismo à mendicidade, tanto mais fatal, quanto à sombra da miséria se oculta o vicio proveniente da indolência e preguiça, contra que se deve armar a sociedade (PROVÍNCIA DO CEARÁ, 1881).

Como se percebe não havia em Fortaleza espaços reservados ou abertos para acolher os “degredados filhos” da seca. Amparados pelo artigo número 9, do Código de 1879, as classes economicamente ativas compunham uma intervenção urbana que viabilizasse a constituição da ordem, proibindo assim, o reparo ou melhoramento de:

(...) cazas, ainda que de taipa ou palha que [estivessem] dentro de ruas e praças projetadas sendo elles em caso de ruina, demolidas pela camara como no caso couber.

Até o Passeio Público de Fortaleza foi projetado para ser mais um espaço público destinado, especialmente, para o entretenimento da elite local. Fato histórico revelado e impresso pela Câmara Municipal em seu Código de Posturas, que em 1879, proibia:

A entrada de quem não [estivesse] decentimente vestido, do embriagado e dos que se [achassem] illegalmente armados; assim como, o despejo de ourina ou de qual immundicies dentro, ou fóra, junto ao gradil do passeio.

No ano de 1878, Fortaleza abrigava milhares de retirantes em estado de lastimável condição econômica. Raimundo Girão informou que “(...) cedo Fortaleza converteu-se na metrópole da fome” (GIRÃO, 2000, p. 390). Eram centenas de flagelados povoando a capital, o que transformou a cidade dos moldes europeus elitistas, num cenário da mais profunda miséria e calamidade social.

Os jornais locais, por sua vez, denunciavam esta calamidade pública proveniente de uma estrutura política indiferente à pobreza, através das quais as autoridades executavam ações que intensificavam somente o poder da elite local. O que se sucedia no mesmo instante em que se dava diversos falecimentos por sede ou por doenças dos retirantes. Fatos que eram cuidadosamente denunciados pela imprensa cearense:

A indiferença com que a pública administração provincial tem acolhido as tristonhas verdades de que nossos comprovincianos e irmãos estão a essa hora bloqueados pela fome e seca nos sertões, ó, não só uma falta gravíssima, como um crime de lesa-humanidade. (...) Uma administração que deixa seus administrados morrerem de inanição, enquanto lhe sobra meios de socorrê-los e ampará-los é merecedora dos mais veementes e severas recusações (O CEARENSE, 01/01/1877).

Até mesmo Rodolfo Teófilo, que imprimiu em seus escritos, profundos retratos de todo o flagelo desta época, travou uma densa luta contra a varíola na província. Em seu gesto de vacinar os retirantes, indignado-se com a administração pública, desferiu duras críticas ao poder executivo:

Os poderes públicos e os particulares, em breve, esqueceram os lutuosos dias da seca e da peste e não se premuniram contra aqueles flagelos retendo a maior quantidade possível das águas pluviais e vacinando com vacina anti-vaciolica os que nascem. (...) O governo pouco se preocupou com a seca e não tratou de extingui-la. (...) O governo e os particulares continuavam em sua criminosa indiferença a olhar para a permanência da varíola e seca em Fortaleza como um fato muito natural e sem importância (TEÓFILO, 1997, p. 47-58).

No interior da província cearense a situação não era diferenciada. Milhares de pessoas deixavam suas terras e suas cidades para migrarem para a capital, buscando algum tipo de auxílio. Foi com base na miséria que se consolidou o domínio político da elite, onde as ações de combate à seca, nas quais estavam atreladas à dependência dos interesses particulares do poder local. Tais fatos demonstraram que há muito tempo a seca não é apenas um fenômeno puramente climático, mas também gera uma condição sócio-histórica desigual para os atores envolvidos nela.

Assim, a política de combate às secas foi toda perpassada por interesses econômicos e políticos da elite local, que se apropriava do Estado para legitimar as suas finalidades. Estava fundada assim, a “indústria da seca”, que na situação de flagelo da população, executava socorros paliativos e insuficientes para a emergente situação. É o que se pode perceber, quando a Promotoria Pública de Canindé, em 1878, distribui insuficientemente, menos de um litro d’água por dia para as pessoas beberem, cozinharem e tomarem banho:

Distribuição de Água Para as Pessoas:
1a – 37 pessoas 28 litros
2a – 97 pessoas 63 litros
3a - 152 pessoas 96 litros
4a - 221 pessoas 123 litros
5a - 240 pessoas 131 litros
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ:
Arquivo Público, Comissão de Socorros de
Canindé, 1877.

Não só a água, mas os alimentos também eram insuficientes para auxiliar a população:

Resumo de Socorros Distribuídos Em Julho de 1877 em Cascavel:
Número populacional Quantidade distribuída de alimentos:
Residentes – 0273 Milho - 1838,6 l
Emigrantes – 1798 Feijão - 1834,6 l
Total – 2171 Arroz - 917,3 l
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Cascavel, 1877.

Por conseqüência, o quadro de calamidade social a qual Rodolfo Teófilo dizia que “(...) era um quadro sombrio, uma caravana de retirantes. Verdadeiros esqueletos animados, com a pele enegrecida pelo pó das estradas e colocada aos ossos (TEÓFILO, 1997, p. 46)”; ocasionava diversas mortes e êxodos populacionais de algumas cidades:
Comissão de Domiciliários da Província:
Distrito Saíram Ficaram
Lagoa Seca 4560 1470
São Sebastião 6409 1368
Meinho 3919 1309
Fonte: O CEARENSE, 1879.


Comissão de Socorros de Barbalha 1879
Movimento dos Indigentes Tratados de 28 a 31 de Março de 1879

Homens Mulheres Crianças Total
Existiam 7 6 ... 27
Entraram 12 30 ... 67
Falecidos 1 2 4 7
Curados 0 0 0 0
Ficão Existindo 18 38 31 87
Fonte: PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Barbalha, 1879.

(...) 385 mortos na cidade de Maranguape por varíola e fome descreve o Dr. Antonio Leopoldino dos Passos em 16 de Abril de 1877 (O CEARENSE, Abril de 1877).

De 7 a 9 forão sepultados 2054 cadáveres, contando os de 1 a 6 completão 7000 cifra esta a mais elevada de que tenho conhecimento (O CEARENSE, Janeiro de 1879).

O estado da saúde pública neste termo, se não é aterrador, não é por centro dos mais lisonjeiros. São muitos os que padecem de edema, febres intermitentes, e tem aparecido alguns casos de febre tiplóide (PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Comissão de Socorros de Canindé, 1878).

O triste, contristador e lamentável espetáculo, se observou ocasionado pela dura e cruel seca, que vamos atravessando, impõe-se a rigorosa obrigação de socorrer ao zelo de vossa excelência, pedindo-lhe socorro para a classe pobre, aqui numerosissíma, foge, abandona suas propriedades, serviços de muitos anos, e lança-se no horror de uma emigração sem ter recursos para a viagem, nem saber para aonde ir (PROVÍNCIA DO CEARÁ: Arquivo Público, Delegacia de Polícia de Quixadá, 1877).

Mendigos de todas as idades pediam pão pelas portas, cada qual mais andrijoso, mais repellente. (...) Quem fosse a beira-mar seria testemunha de um espetáculo triste, o desfilar do cortejo da fome. Todos os dias ao alvorecer lá iam caminho da pedreira do Mucuripe, milhares de convalescentes, ainda trôpegos, ainda com a pele negra de pústulas mal cicatrizadas, a trocar o trabalho pela ração. Neste préstito de mendigos, viam-se centenas de mulheres ofegantes, suarentas, ao peso da carga, que o governo lhes puzera as costas sem piedade pelo seu estado de abatimento e nenhuma diferença pela fraqueza do sexo (TEÓFILO, 1997, p. 46-49).

Gerava-se, assim, um contexto no qual as ações de socorros públicos eram insuficientes e manipulados pela elite local. Cotidiano político denunciado pela imprensa local em diversos momentos:

Com efeito, S. Estelita deixa a presidência depois de ter esbanjado mais de setecentos contos de réis da verba de socorros públicos, sem ter conseguido socorrer senão as comissões, os comissionados, as subcomissionadas e protegidas. Em toda a Província não existe um só celeiro onde a indigência mitigue fome um dia sequer. (...) Mas S. Excelência via de braços cruzados, os especuladores atalharem essa idéia generosa em seu proveito, se assim nos podemos exprimir, sem ter a energia dos embargar-lhes os passos (O RETIRANTE, Outubro de 1877).

Assim, o governo provincial detinha ineficientes medidas de socorros à população. Todo este contexto de inadimplência política gerou, por conseqüência, pedintes e miseráveis, retirantes que rondavam pelas ruas, que pereciam de fome, se transformassem em sujeitos de ações coletivas frente à situação. Da atitude silenciosa e cabisbaixa que esperava a esmola, à atitude de gritos e conflitos que exigiam uma maior ação das autoridades: o que ocasionou muitos saques e revoltas (CÂNDIDO, 2005).

Após décadas de fome, os flagelados agiram no sentido de aterrorizarem os defensores da ordem, fato que esvaziava a retórica paliativa da caridade, pois começaram a existir situações de conflitos com relatos de torturas e de assassinatos entre fazendeiros e retirantes. Destes fatos, restam alguns versos publicados no Jornal O Retirante em outubro de 1877, em que um fazendeiro (de apelido Pirão) foi acusado de assassinar um retirante que estava roubando em sua propriedade algumas raízes de macaxeira:

Oh! Retirante lá do sertão,
Guardai as costas, olha o Pirão
Lá da caverna, do Mondubim,
Um retirante já levou fim por macaxeira.
Que todos dão, leva-se ali bolos na mão.
Será criminoso quem procede assim?
Que diga o Pirão lá do Mondubim,
Já que de história de macaxeira
Saber não quer o chefe Nogueira (O RETIRANTE, 1877).

Em 15 de Outubro de 1877, na cidade de Baturité, uma multidão de quatro mil pessoas reuniu-se em frente à casa do tesoureiro da comissão de socorros para receber donativos. Porém, o agente limitou-se a distribuir alimentos a poucas pessoas. Logo, o povo se lançou sobre a casa, invadindo-a, agarrando sacos de farinha e outros gêneros alimentícios. No dia seguinte, outro conflito foi desencadeado: a população percebendo a insuficiência de alimentos para serem distribuídos na cidade, invadiu os armazéns disponíveis, tendo certo confronto com o corpo de polícia de Fortaleza, o qual foi deslocado para o local (CÂNDIDO, 2005). Na capital cearense a situação não é diferenciada de Baturité, que com o impacto da chegada em massa dos retirantes, bastaram poucos meses para que os conflitos se intensificassem entre os imigrantes e as autoridades locais.

1888: Seca Curta e Fatal

São poucas as fontes documentais a respeito do último ciclo de secas da época do Ceará Imperial, ao contrário da abundância de relatos oriundos dos anos de 1877/79. Até porque foi um curto período, o qual foi amenizado com algumas estratégias governamentais em relação ao problema da estiagem.

Existem notícias, por exemplo, que após a grande crise de 1877/79, no ano de 1880, novos projetos voltaram a serem efetuados com o intuito de construir açudes nas localidades de Lavras e de Quixadá. Em 1884, o engenheiro Jules Revy recebeu a autorização para iniciar a construção de um açude em Quixadá, mas dois anos depois foi paralisado por ordem do Governo Imperial. Após algumas retomadas e novas paralisações, este açude só foi concluído em 1906, já na época da República Velha.

Apesar desse projeto estatal não ter tido êxito em sua finalidade, o Governo Imperial elaborou um projeto paralelo de construção da estrada de ferro em Baturité. Esse empreendimento, além de viabilizar a conexão e troca de produtos econômicos entre o interior do Estado e a capital, também possuía o intuito de amenizar os conflitos constantes entre autoridades e flagelados; atores sociais insatisfeitos com toda a calamidade oriunda do ciclo de 1877/79. A execução da ferrovia empregou centenas de retirantes, ocupando-os com ofícios e dando-lhes mínimas condições econômicas para o sustento de suas famílias.

Conclusão

Detecta-se que a crise da seca no Ceará Imperial foi um fato que ocasionou forte impacto sócio-econômico para a sociedade cearense, tendo por conseqüência, ciclos memoráveis de crises climáticas que assolaram de forma calamitosa os pobres agricultores do interior da província.

O flagelo social dos sertanejos foi decorrente de problemas em relação as secas que não receberam soluções precisas ou definitivas por parte do Governo Imperial. Pois, com a marginalização da província às atenções da política nacional, não houve o devido enfrentamento da crise social com a execução de obras.
Sobre a administração instaurada por D. Pedro II no combates as secas, ficou a conclusão de que não foram executadas grandes obras e que diversos projetos apresentados por técnicos foram arquivados. Essas foram vicissitudes de uma conjuntura nacional que configurou, no âmbito sócio-político, uma exclusão das províncias do Nordeste: não havendo o devido enfrentamento da crise social nos grandes ciclos de seca.

O combate às secas ou a política de enfrentamento do problema era toda perpassada pelos interesses da elite econômica e política, a qual se apropriava dos órgãos públicos para legitimar a conhecida “indústria das secas” através de manipulação de interesses ou de ilícitas vantagens que obtinham as custas do sofrimento das vítimas das secas. Os retirantes diante de todo descaso governamental não se calaram, acabavam por se rebelar, tornando-se ativos atores sociais ao se indignarem com a cúpula local.

O Ceará, que possui raízes históricas acerca das secas, desde o período colonial até os atuais dias, está em constante luta contra um modelo concentrador que prejudica a região, e que, além disso, mascara os sofrimentos dos “degredados filhos” deste solo. É de suma relevância centrar atenções e colocar como questão primordial às desigualdades oriundas dos ciclos das secas no semi-árido cearense, dos privilégios que a conjuntura política legitima, das ilícitas vantagens que certos grupos obtêm à custa do sofrimento da maioria da população.


Referências Bibliográficas

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