terça-feira, 19 de outubro de 2010

A RELAÇÃO POLÍTICA ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NAS SECAS CEARENSES NA OBRA LITERÁRIA DE RODOLFO TEÓFILO



por Dennis de Oliveira Santos

Resumo

Esse artigo científico discute a partir de uma perspectiva sociológica, a relação política entre Estado e sociedade civil durante as secas do período imperial, expressas na obra literária chamada A Fome, do escritor Rodolfo Teófilo. Propõe-se analisar as falas e as ações das personagens desse romance, analisando nesse contexto, as concepções vigentes por parte da sociedade em sua relação/uso da esfera pública: o espírito patrimonial - a cooptação dos órgãos estatais segundo interesses privados.

Palavras-Chave: estado, sociedade civil, política, seca, literatura.

Summary

This paper discusses, from a sociological perspective, the political relationship between the state and civil society during the droughts of the imperial period, expressed in a literary work called The Hunger, the writer Rodolfo Teófilo. It is proposed to analyze the speeches and actions of the characters of this novel, examining in this context, the prevailing conceptions by the society in its relationship / use of the public sphere: the spirit of co-patrimonial state organs second private interests.

Keywords: state, civil society, politics, drought, literature.

Considerações Iniciais

Farmacêutico, escritor, sanitarista, cronista, inventor da cajuína; Rodolfo Teófilo foi sem dúvida um dos homens públicos mais atuantes no cenário político e cultural do Estado do Ceará. Além disso, pode ser considerado como um dos mais representativos literatos da região em todos os tempos.

Sua produção literária, que muitas vezes foi desmerecida por críticos da literatura, em função de algumas oscilações puramente estéticas por parte do autor, é em compensação, vista, a partir de seu conteúdo histórico e regional, como um vultoso monumento artístico em torno de temas como as secas, por exemplo, que, com o passar do tempo, reforça-se como fonte inesgotável de reflexões sociológicas acerca do Nordeste Brasileiro e suas crises climáticas. O autor em questão possuía uma relevante capacidade de descrição e observação dos aspectos sociais advindos das crises climáticas na região cearense; a qual ficou impressa no romance A Fome.

É diante dessa obra, recheada de cenas da seca do Ceará, com seus relatos de questões sociais e econômicas aviltantes, que cabe aqui, analisar essa produção literária numa perspectiva sociológica, a partir do seguinte questionamento: qual a relação política efetivada entre Estado e sociedade civil durante as secas do período imperial na obra literária de Rodolfo Teófilo?

Procedimentos Metodológicos

Adota-se como procedimento metodológico as discussões teóricas concernentes a sociologia da literatura, a qual apresenta uma perspectiva de análise em que, ao invés de estudar apenas a relação entre a obra e o seu condicionamento social, visa-se atentar para o fato de que as questões históricas são assimiladas e transcritas para a obra, através do processo de um universo poético. Quer dizer, os elementos do meio social são filtrados pelo imaginário do autor e transformados numa visão de mundo própria acerca de uma dada realidade social, o que possibilita metodologicamente, obter uma maior compreensão da singularidade e visão de mundo postulada na obra artística (GOLDMANN, 1989).

A Obra Literária e seu Contexto Histórico

A Fome, obra inicial de Rodolfo Teófilo, publicada em 1890, foi o primeiro romance brasileiro que abordou como temática central às secas nordestinas em nossa literatura (MARTINS, 2006). Esse romance narra a alarmante crise climática dos anos de 1877/79, ocorrida no Ceará, inscrito num ambiente regional, onde o social é abarcado por fatores determinantes como o meio físico, por exemplo.

O enredo da história é constantemente cerceado pela luta em busca da sobrevivência entre os flagelados da seca, pelos costumes adquiridos pelos sertanejos diante da árida vegetação, e também pelos alarmantes descasos públicos frente a toda essa problemática. O núcleo da obra retrata a odisséia de Manuel de Freitas (personagem principal) junto a sua esposa e filhos; grupo familiar de retirantes que, perdendo seus bens e posses durante a estiagem, resolvem migrar do interior do estado para Fortaleza, em busca de auxílio e mantimentos que garantissem suas existências.

Diante de um complexo animalesco existente entre os flagelados filhos desse solo, peculiaridades chocantes vão configurando o drama de adaptação e vida do sertanejo na referida região. Nesse contexto, cabe de antemão, entender a formação intelectual e o contexto histórico do autor, para que assim, detenha-se maiores dados para a concretização de uma análise científica.

A visão de mundo de Teófilo foi constituída por duas concepções intelectuais hegemônicas socialmente em sua época: o positivismo e o naturalismo (MONTENEGRO, 1997). O positivismo é uma orientação filosófica que consiste na concepção em que a sociedade tende a evoluir em ciclos históricos a partir do momento em que a ciência fundamenta-se como a principal ordenação das diversas atividades humanas. Portanto, o método científico, por ser o único válido na busca e construção do conhecimento, deve ser estendido a todas as indagações e intuitos do homem: toda a vida individual ou social deve ser guiada por ele. As explicações religiosas acerca do homem e do mundo que o rodeia, deveriam, gradativamente, serem substituídas por reflexões provenientes da lógica científica.

Já o Naturalismo é um estilo literário em que a reprodução artística da realidade é a meta a ser sempre buscada pelo escritor. Nessa corrente intelectual, independente da vontade humana, a arte nasce da vida e reflete-a numa consistente e profunda fidelidade aos fatos, instante em que a vida humana acaba sendo “espelhada realisticamente” na manifestação literária (SODRÉ, 1976). Nesse sentido, ao contrário dos escritores românticos, que confeccionavam textos de modo idealista e demasiadamente fantasioso acerca de temas como a mulher e o amor, por exemplo, os naturalistas visavam descrever a realidade sem peias de ideais, sem utopias: os fatos deveriam ser apresentados “assim como são”, evitando o apelo a temas de larga emotividade; procurando descrevê-los com o teor máximo de objetividade.

Além disso, a exemplo do positivismo, nessa tendência literária, existe o demasiado interesse por questões científicas, que são freqüentemente levantadas nas obras, o que possibilitaria uma melhor busca da objetividade no que é produzido: procurava-se mostrar a influência do ambiente social sobre a ação dos indivíduos, enveredava-se por caminhos do biologismo ao descrever as personagens em atitudes de perfeita zoomorfização.

Essas correntes intelectuais eram oriundas das transformações sociais ocorridas na Europa durante a segunda metade do século XIX (1840-1888) advindas da utilização de máquinas na produção, rápido processo de urbanização das cidades, etc. Este aparente triunfo da indústria capitalista, capitaneada pelos avanços tecnológicos provenientes da centralidade da razão como porta voz da sociedade daquela época, teve por conseqüência, o acarretamento de grandes problemas urbanos, os quais geraram condições para a crescente organização da classe operária diante das precárias condições de vida social que vinha tendo.

No Brasil, o café era a base econômica de todo o Império, em produções crescentes, esta cultura agrícola iniciou uma época de relativas transformações e rápido progresso para a sociedade brasileira, inserindo novos costumes no seio da cultura local através da europeização do estilo de vida na região. Época em que o país era dirigido por D. Pedro II, reinado que perdurou por bastante tempo (FAORO, 2001).
Todas essas transformações sociais e correntes intelectuais repercutiram no Ceará Imperial. A partir daí, rapidamente, os costumes regionais foram abandonados em detrimento de novos hábitos, os quais estavam ajustados à realidade dos centros industriais. Desse modo, Fortaleza começou a ser configurada como espaço por excelência da atividade comercial pelos administradores municipais e urbanistas.

Desse modo, a diversidade das experiências culturais dos sujeitos locais (sertanejos, caboclos, negros, colonos), que durante o percurso histórico da colonização da região, materializavam a sua realidade, através de cultos religiosos, festas, brincadeiras; tiveram toda essa experiência coletiva desintegrada em nome do progresso capitalista. A capital cearense não era mais aquela remota e antiga vila, e sim, um local do glamour dos bailes, clubes e elegantes festas das famílias chiques da região (CAMPOS, 1985).

A rápida adesão aos produtos e hábitos desse novo tipo de sociabilidade frente à implantação da república no Brasil e os fervorosos ideais do progresso, foram implantados através de uma significativa violência simbólica. Na luta pela detenção do poder do conhecimento, utilizou-se diversos símbolos (inserção de novos hábitos aristocráticos europeizados, urbanização da cidade, etc), os quais legitimavam uma simbólica violência ao desintegrar os costumes e estilos de vida, até aquele momento existentes na região cearense. Lembrando que nesse processo, o Estado foi amplamente utilizado como oficial nomeador dessa nova ordem (BOURDIEU, 1998).

Então, danças, festas, folguedos (festas regionais da época), maracatus, reisados, foram suprimidos pelas concepções positivistas dos militares e pela febre do consumo em escala industrial. Estes novos modos de vida aristocráticos, advindos da Europa industrial, incorporavam-se nas classes médias urbanas e grupos dominantes da sociedade brasileira, o que contribuiu para alargar ainda mais as diferenças internas sócio-econômicas do país (CARVALHO, 1998).

É a partir da captação dessas concepções que é possível compreender que, inicialmente, Teófilo recebe de seu meio social a influência intelectual proveniente do Naturalismo/Positivismo, o qual lhe possibilitou a superação de dúvidas metafísicas, aonde o processo de secularização contrapõe-se à religiosidade. Porém, ao longo de seu percurso intelectual, percebe-se que o autor tece uma visão de mundo própria acerca da realidade social. Momento em que ao invés de sua produção artística ser apenas um mero reflexo aos ideais de progresso dos positivistas, ele receberá a influência social, mas relativiza-a de certo modo, adotando posições que serão críticas diante da classe burguesa e de seus novos hábitos. Isso fica bem claro quando se observa a sua solitária luta de vacinação dos flagelados das secas e a adesão à Padaria Espiritual: grupo de intelectuais de Fortaleza que criticavam os valores burgueses da época através de manifestações artísticas (CARDOSO, 2002).

Ambiente Político

Diante da protagonização meticulosa de um ambiente físico, tipicamente alheio para a sobrevivência humana, a barbárie social era ampliada à partir de determinadas práticas na esfera pública; o que conseqüentemente, operou diversas decorrências desumanas nos flagelos climáticos da região cearense.

Há de entender-se que a crise das secas não é um problema exclusivamente provindo da situação climática, más também oriundo da inadimplência dos governantes, que ao longo dos ciclos climáticos, executaram insuficientes projetos para solucionar essa problemática. Assim, gerava-se de modo emergencial, um contexto no qual as ações dos socorros públicos eram insatisfatórias para atender as necessidades locais. Situação sócio-política descrita pelo literato cearense:

A turba dos famintos parou em frente à casa do vigário, que, embora fosse uma das habitações melhores da cidade, contudo, não se podia dizer confortável. Os retirantes fizeram alta e sentaram-se na rua esperando que se distribuísse a ração. (...) Eram já nove da manhã e a ração não chegava. Os famintos resignavam-se com a demora, porque não tinham forças para reagir. Gemiam, suspiravam, porém, não blasfemavam (TEÓFILO, 1979, p. 50-51).

Percebe-se que nesse trecho da obra, a insuficiência de distribuição de alimentos para a população, o que era advinda dos órgãos públicos, que executava suas ações de modo paliativo diante da emergente situação. Essa prática foi adotada em função da concepção reinante entre os membros da administração pública, que consistia na idéia de não executar grandes obras para solucionar a crise das secas, instante em que diversos projetos apresentados por técnicos eram arquivados (ALVES, 1982).

Essa precariedade do espírito comunitário, a ausência de integração social deixou mais saliente o estado de pauperismo e mendicância dos sertanejos; tornando-se agora flagelados das secas. A margem das instituições sociais, a relação entre os retirantes ocorria num individualismo grosseiro, atenuando a anomalia social persistente naquele local, o que é percebido na distribuição de alimentos:

A ração era ali mesmo devorada com uma esfomeação que comovia! Muitos ingeriam com tal avidez que não davam tempo à saliva umedecer o bolo e engasgavam-se. Parte do bolo era rejeitado e saía pelo nariz e boca, misturando-se à areia. Avaros das migalhas caídas, apanhavam-nas de novo, cobertas de terra (TEÓFILO, 1979, p. 53).

Toda essa dramática luta pela sobrevivência e as insuficientes ações governamentais são decorrentes da implantação da “indústria das secas”; que é o combate às estiagens, ou a política de enfrentamento da crise climática, toda ela perpassada pelos interesses particulares, onde há a presença de ilícitas vantagens que certos grupos dominantes acabam obtendo à custa do sofrimento das vítimas das secas. Cotidiano político arraigado no semi-árido nordestino, amplamente estudado por teóricos da cultura brasileira:

Cada seca, e por vezes a simples ameaça de uma estiagem, transforma-se numa operação política que, em nome do socorro aos flagelados, caberia vultosas verbas para a abertura de estradas e, sobretudo, a construção de açudes nos criatórios. Nas últimas décadas, enormes somas federais concedidas para o atendimento das populações nordestinas atingidas pelas secas custearam a construção de milhares de açudes, grandes e pequenos, enriquecendo ainda mais os latifundiários, assegurando a seu gado a água salvadora nos quadros de estiagem e amplas estradas para movimentar os rebanhos em busca de pastos frescos (RIBEIRO, 1995, p. 348-349).

Então, diante dessa prática governamental, os programas públicos de socorros aos flagelados ficavam sob o domínio de determinados grupos influentes na região, para os usos que mais lhes convinham (FAORO, 2001). Essa tutela dos projetos públicos acabou influindo diversas vicissitudes administrativas, através de corrupções políticas cometidas pelos donos do poder:

O comendador pertencia à política da situação; tinha voto na escolha dos candidatos à deputação. Um dos deputados em perspectiva cercava Prisco de todas as atenções. (...) Prisco acreditou-se barão e, num contentamento infantil, prometeu todo o auxílio à candidatura do correligionário e, ainda mais, algum dinheiro, caso no círculo houvesse algum eleitor a comprar (TEÓFILO, 1979, p. 84).

Prisco, personagem detentor de um importante cargo político, sintetiza em seus intuitos e práticas as irregularidades públicas que eram efetivadas na província do Ceará. Ao invés de estabelecerem-se sólidas ações políticas em nome das necessidades sociais da sociedade, a esfera pública acabava tornando-se uma ampliação dos interesses particulares de certos grupos; intensificando nesse ambiente, a troca de favores numa ilegalidade aviltante.

Assim, a ordem dos grupos dominantes monopolizava as ações governamentais segundo seus desejos pessoais. A relação desse setor social com o âmbito político, conseguia por fim, colocar até as secas a seu serviço e fazer delas um negócio bastante rentável. O combate tradicional às estiagens foi perpassado pela distribuição de verbas trocadas entre detentores de cargos públicos com a construção de açudes em terras privadas, a manutenção de currais eleitorais, etc. Cotidiano político que era caracterizado por um “naturalizável costume” político brasileiro, o patrimonialismo, o qual influenciava todos os membros da esfera pública, tantos os altos ou baixos cargos:

É Simeão Arruda, comissário distribuidor de socorros públicos. (...) Deve o lugar de comissário à política. É partidário exaltado, bom cabo de eleições, reúne capangas, e não há quem grite mais nos conflitos eleitorais. A sua nomeação não foi muito fácil. O lugar era ambicionado como se fosse um rendoso emprego. As vagas eram preenchidas mais de acordo com os interesses da política, do que com a conveniência pública. O presidente da província tinha sempre uma lista de pretendentes a escolher (TEÓFILO, 1979, p. 97).

Arruda, personagem entre os mais importantes nessa história, demonstra como os detentores das posições públicas de médio porte, a exemplo de seus superiores, formados por tal ambiente, não compreendiam uma precisa e fundamental distinção entre os domínios do público e do privado. Essa personagem é o ser socialmente cerceado pela “naturalização social da corrupção”, o que influi em seu comportamento, tornando-se promíscuo e amoral em sua relação com os flagelados. Afirmações que são detectadas num trecho da obra em que esse personagem oferece a Manuel de Freitas e sua família, moradia e uma grande quantidade de alimentos, pensando em conquistar de forma imoral o coração da desconfiada filha do ex-fazendeiro. Além disso, nessa mesma passagem da obra, mostra-se claramente como a distribuição de socorros era feita de modo aleatória, a partir dos interesses dos membros da esfera pública, no caso, o seu interesse emotivo pela moça transcendia ilegalmente a ordem burocrática e impessoal do âmbito público.

Assim, os funcionários públicos caracterizavam seus cargos como fontes de ascendência social, de constante aquisição econômica, ao invés de um instrumento administrativo em prol de todas as camadas da sociedade, no qual se buscaria a emancipação de todo o coletivo. Prática denominada de patrimonialismo, que conceitualmente é definida da seguinte forma:

Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas ao Estado (HOLANDA, 1995, p. 146).

Porém, o peculiar nessa atividade com fins particulares no âmbito governamental, era a inserção de toda a comunidade nessa prática. Essa postura em torno de que o público é a extensão dos desejos pessoais de cada indivíduo inserido nessa, acabava comprometendo até o desempenho das instituições religiosas:

A obesa figura do padre fazia um contraste perfeito com a magreza dos retirantes. Repoltreando em uma cadeira de braços de espaldas de sola, lia com muita calma. (...) ... olhava de soslaio os retirantes que o espreitavam. (...) O fazendeiro, exasperado com a indiferença do padre, teve ímpetos de arrancar-lhe o livro da mão e obrigá-lo a atendê-lo (TEÓFILO, 1979, p. 51-52).

Portanto, o espírito patrimonialista repete-se em nossas instituições políticas em função de ser ele praticado nas diversas camadas da sociedade. É ele que dá o tom das relações sociais, o que insere não apenas as instituições oficiais que moldam a sociabilidade dos cidadãos, mas estes próprios, como é o caso da personagem Quitéria do Cabo.

Essa personagem era uma senhora de idade avantajada, que inseria-se nas vicissitudes estatais da seguinte forma: desenvolvia favores ao corrupto Simeão de Arruda como aproximar este da Carolina (filha de Manuel de Freitas), em troca de ilícitas vantagens, como é o caso da aquisição de sua casa sem passar por nenhum mecanismo de avaliação frente ao Estado.

Personagem marcada pelo extremo interesse, pela hipocrisia através das (des)qualidades sugeridas pelo autor da obra. Dessa forma, as negligenciais práticas públicas, teriam sua origem na própria sociedade civil, não no Estado em si; pensamento muito presente no imaginário popular. Ao contrário, as ilícitas ações gestadas dentro do Estado, seriam um reflexo da legitimidade que, inconscientemente, a própria sociedade civil tende a estabilizar.

Nesse sentido, a ambígua combinação entre a gestão burocrática/racional e a tradicional/patrimonialista impede que o homem pobre tenha a percepção de si, como detentor de direitos e a identificação de seus objetivos públicos para que possa agir com unidade. Desse modo, o diagnóstico da modernização deverá ser operado na emancipação dos interesses da política e do Estado, o que pode ser buscado na ampliação da cidadania e no fortalecimento da sociabilidade pública responsável, investida contra o que seria o atraso oriundo do comportamento patrimonialista. A avaliação da nossa história, com vistas a reformar determinadas práticas societais, reside na possibilidade de ser constituída uma nova sociabilidade, a qual possibilita resolver a velha problemática entre as esferas públicas e privadas.

Considerações Finais

Conclui-se, que nas falas e intuitos das personagens do romance A Fome, obra literária de Rodolfo Teófilo, está presente a concepção de que a relação entre Estado e sociedade civil é marcada por uma ambígua gestão burocrática, baseada no patrimonialismo. Gerando-se, a partir desse aspecto social, negligencias públicas por parte dos administradores estatais e assegurando ilícitas vantagens à sociedade civil, em seu contato com a coisa pública.

Essa obra literária ilustra a partir de diversas cenas, que a reprodução da estrutura patrimonial é a tradução de nossa cultura: existe a ambígua relação entre a frágil consolidação institucional do Estado burocrático diante da conservadora/paternalista relação social entre órgãos estatais e sociedade civil baseada no modo patrimonial – tudo se baseia nos elos de amizade, nos vínculos pessoais em geral quando se trata de utilizar a coisa pública. Para nós, a vida pública não é nada menos de que uma expansão de nossos interesses particulares: um cargo público conseguido à custa da influência de um grupo conhecido, algo ganho através da “peixada” de um amigo.

Fatos esses do cotidiano político brasileiro que demonstram a confusão entre a esfera pública e privada não é um comportamento desviante, e sim uma freqüente norma no seio da sociedade civil brasileira. Ação social que a partir de um longo processo histórico instala-se na mentalidade popular e nas ações dos governantes, assim como é o caso do personagem Arruda e sua concepção acerca de sua inserção num emprego público: Arruda aceitou o emprego, disposto a fazer dele um meio de vida honesto como qualquer outro; pensando como muita gente pensava: furtar do governo não é furtar (TEÓFILO, 1979, p. 98).

Referências Bibliográficas

ALVES, Joaquim. História das Secas: século XVII a XIX. 2ed. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1982.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

CAMPOS, Eduardo. Capítulos de História da Fortaleza do Século XIX. Fortaleza: Ufc, 1985.

CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. Pontos & Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ufmg, 1998.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. 5ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3ed. São Paulo: Globo, 2001.

GOLDMANN, Lucien (org.). Sociologia da Literatura. São Paulo: Mandacaru, 1989.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MARTINS, Wilson. Rodolfo Teófilo. Disponível em: Acesso em: 6 de Agosto de 2006.

MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. A Política do Corpo na Obra Literária de Rodolfo Teófilo. Fortaleza: Ufc, 1997.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 6ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

TEÓFILO, Rodolfo. A Fome. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.

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