terça-feira, 19 de outubro de 2010

A RELAÇÃO DOS VIVOS COM SEUS ENTES FALECIDOS NO DIA DOS FINADOS



por Dennis de Oliveira Santos

Considerações Iniciais

No dia de Finados, data comemorada nacionalmente, surge o reconhecimento da intrigante questão existencial a respeito do ser humano e sua relação com a morte: existe vida após a morte? Nesse momento, não celebra-se exatamente a morte, mas sim a saudade pelos entes falecidos. Um acontecimento nutrido de solenidade, onde os vivos vão depositar em um propício local, toda a dor e saudade, guardadas por aqueles que "não habitam mais esse mundo". Nossos mortos são plantados como sementes, regadas com nossas lágrimas e florescem ressuscitados em nosso imaginário coletivo.

Questões e fatos emaranhados de contradições e sentimentos que fomentam diversas reflexões aos indivíduos. E é nesse contexto, em que cria-se determinados atos simbólicos coletivamente, que são um veículo social (os mitos e ritos) que tenta homogeneizar algumas respostas para a grande incógnita que é o processo da morte: o "não mais ser", aquele "que se foi", etc.

Diante desse contexto, pode-se analisar alguns símbolos identitários da população brasileira, que responda e integre um pensamento coletivo acerca desse evento. Então surgem as seguintes indagações a serem respondidas: numa celebração como essa, como o mito oriundo dessa data organiza o meio social? Qual a importância desse rito para a formação identitária da relação social dos indivíduos?

Procedimentos Metodológicos

Utiliza-se o método etnográfico, que consiste na descrição e análise das sociedades humanas, visando levantar todo o tipo de dado possível para melhor compreender a cultura específica de um determinado grupo. Concepção metodológica que “consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidade” (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 37).

Somatizando a esse procedimento metodológico, outro método aplicado nesse trabalho é a técnica da coleta das falas dos sujeitos através de um questionário. Trata-se do levantamento de dados através de uma série de indagações escritas, cujas respostas deverão ser dadas pelo entrevistado. Técnica que conceitualmente é definida da seguinte forma:

(...) Trata-se do contato direto, face a face, entre o pesquisador e o entrevistado, a fim de que o primeiro obtenha informações úteis a seu trabalho... Ela pode ser dirigida – quando segue um roteiro preestabelecido (MARCONI, 1992, p. 21).

Atual Ambiente da Modernidade

Diversos gigabytes de dados são armazenados e processados por potentes e modernos computadores, luxuosos prédios assinalam os esplêndidos horizontes, o que gera um turbilhão de informações sem precedentes na história da humanidade. Agitadas especulações financeiras são as novidades comerciais que ditam as regas da economia mundial, o congestionamento dos veículos é intenso na avenida mais próxima... Eis o atual ambiente chamado “modernidade”, que cria um “delírio” na relação com o espaço e o tempo, dilata o meio urbano e se precipita sobre o mundo, invadindo-nos com uma sólida ideologia, que surge para nossa “salvação” ou “desgraça”.

Diante desse cenário, surge a globalização de todas as sociedades mundiais, a centralização no indivíduo como medida e fim de todas as coisas. O advento das novas tecnologias e as esmagadoras fontes de informações, inserem os seres num ambiente arquitetado pela mundialização da cultura neoliberal. Ambiente no qual os tecnocratas que ditam os conceitos em larga escala em questões de consumo, desarticulando os homens de suas identidades regionais, de suas particularidades nacionais.

Ações bem delineadas, que são um consistente instrumento que visa em sua gênese, proliferar o discurso reinante da modernidade, incessantemente elaborado por seus defensores, que por finalidade, possui o papel de celebrar o sujeito e o seu eu como os “atores” sociais desse sistema social vigente. Torná-los “objetos dóceis” aos cânones do consumo desenfreado e do narcisismo exacerbado, cultura que lança os “holofotes” para o individualismo e procura ocultar qualquer possível gregarismo dentro da sociedade. Tipo de organização social que finda em suas formas societais o narcisismo exacerbado, a deriva individualista como perfil psico-cultural do Homo mundialis, que também é um fato político (CHESNEAUX, 1996).

Esse processo global não revela a universalização do bem estar. Essa modernidade carrega consigo diversas contradições, e uma delas é à busca das pessoas de uma identidade social, que suplemente o “vazio” oriundo da supervalorização do eu antes do coletivo.

Nesse contexto, surgem às festas cívicas e religiosas, dentre elas, o dia dos finados. São diversas expressões simbólicas, formas de manifestações coletivas dos seres, que em seus esforços, visam decifrar ou afirmar uma ordem social que muitas vezes lhes escapam através dessa “veloz cultura” que os rodeiam. Símbolos e mitos que são um importante veículo de formação identidária dos sujeitos:

(...) Os símbolos estão no centro, constituem o cerne dessa vida... Ao longo do dia e da noite, em nossa linguagem, nossos gestos ou nossos sonhos, quer percebamos isso ou não, cada um de nós utilizamos os símbolos (CHEVALIER, 1994, p. 27).

O Funcionamento dos Mitos e Símbolos

Rodeado de uma vasta tecnologia, de grandes máquinas, diversos livros elucidativos sobre qualquer tipo de fenômeno. Apesar de toda essa “parafernália” tecnicista, que auxilia o conhecimento humano, o homem, nomeado por toda essa racionalidade, sempre cria novos mitos adaptados a sua realidade social.

O mito e o rito não são apenas meras lendas e fabulações, mas sim, uma consistente organização da realidade, a partir da experiência sensível enquanto tal. Para explicar a composição de um mito, antropólogos estudaram mitos de diferentes sociedades, para demonstrar que estas manifestações culturais não são “atrasadas” ou “disformes”, mas poderosas ferramentas que organizam o meio social.

Os símbolos e mitos organizam a realidade social com uma peculiar ação, produz uma concepção social a partir de pedaços e fragmentos de outros fatos. Reuni sem muita rigidez, tudo o que encontra e que serve para o fato que está compondo. Essas manifestações simbólicas reúnem as experiências, as narrativas, os relatos, até compor um mito geral. Diante de toda essa organização, produz-se a explicação sobre a origem e forma dos fatos sociais; descreve os preconceitos, formaliza a estrutura social, acentua as funções e finalidades coletivas, explica os poderes divinos sobre a natureza e os seres humanos. O mito possui então a função de explicar e organizar os fatos sociais presentes na estrutura de qualquer sociedade. Eles possuem em sua gênese, toda esta importância para a formação identitária da coletividade, pois “(...) o símbolo tem precisamente essa propriedade excepcional de sintetizar, numa expressão sensível, todas as influências sociais” (CHEVALIER, 1994, p. 32).

Nesse sentido, as manifestações culturais são estruturas significantes construídas coletivamente, que dão sentido às práticas sociais. Através da prática etnográfica, o pesquisador deve ter seu esforço intelectual orientado para a produção de uma descrição densa.

Para que a interpretação destes símbolos seja efetuada com êxito, é preciso analisar cada caso em particular, analisar os valores sociais que gravitam a partir da fala dos “atores” sociais que compõem estes mitos, e compreender a coerção social que estas forças simbólicas trazem aos indivíduos:

Para explicar o discurso é preciso, portanto, voltar-se, em cada caso, em primeiro lugar para o habito lingüístico – capacidade de utilizar as possibilidades oferecidas pela língua e de avaliar praticamente as ocasiões de utilizá-las... Mas a coerção exercida pelo campo depende das relações de força simbólica que nele se instauram no momento considerado; nas situações de crise, a tensão e as censuras correlativas (BOURDIEU, 1977, p. 54).

O Dia dos Finados

O dia dos finados, data em que reverencia-se “aqueles que não habitam mais este mundo”, momento em que os vivos vão saudar em meio de muitas lembranças e saudades, os seus entes queridos que já faleceram. Numa celebração como essa, como o mito oriundo dessa data organiza o meio social? Qual a importância desse rito para a formação identitária da coletividade dos indivíduos?

Observando atentamente nossas manifestações culturais, detectaremos curiosos traços de nossas expressões coletivas. Percebe-se que algumas sociedades comemoram com maior ênfase certos acontecimentos, enquanto outros, os deixam em segundo plano ou dão uma menor importância. Os norte-americanos super valorizam o dia da independência, por exemplo. Já os mexicanos solenizam uma data em nome de seus falecidos, os brasileiros vibram intensamente com o carnaval, e assim sucessivamente.

A partir do que acontece com o próprio individuo, quando ele celebra, ou é celebrado, emerge socialmente a concepção de que a celebração é uma fala, uma memória e uma mensagem que organiza simbolicamente as idéias coletivamente disseminadas dentre a população. O lugar simbólico onde cerimonialmente se resgata dos fatos os símbolos, posto estes em evidência, comemorando-os, celebrando-os.
Sendo assim, a celebração reuni os sujeitos e objetos da estrutura social do dia a dia, do “corriqueiro”, e os transfigura. A celebração se apossa da rotina e excede sua lógica, sem romper com seus atributos, dando por conseqüência, que seus atores sociais oficializem um ritual de transgressão do rotineiro em nome da formação identitária a partir de alguns aspectos vivenciados. Pode-se dizer que:

Assim, sabemos que as rotinas diárias preservam o tempo na sua duração “normal”, ao passo que nas festas o tempo pode ser acelerado ou vivido como tal. Por que tal experiência é possível? Ora, ela se faz porque, nas rotinas, espaços específicos estão equacionados socialmente a atividades especificas. Não dormimos na rua, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora da igreja etc. Os exemplos, conforme sabe o leitor, são legião. Ora, a festa promove precisamente os deslocamentos destas atividades dos seus digamos, “espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de um tempo louco, notavelmente lento, ou, como ocorre com o nosso carnaval, uma temporalidade acelerada, vibrante e invertida (DAMATTA, 1985, p. 51).

O festejo enquanto manifestação coletiva transcende a rotinização, transfigura os aspectos socialmente firmados, visando afirmar outros valores coletivamente aceitos. Na relação entre vivos e falecidos, no ato de reverenciação, afirma-se o valor da visibilidade da morte. Através de atitudes como deixar flores nas tumbas, ir ao cemitério para lembrar os entes falecidos, os vivos tornam a morte mais visível em suas vidas. Valor notado nas entrevistas coletadas:

A morte é uma certeza de que todo mundo não pode fugir dela, e isso é uma coisa que ninguém quer aceitar, embora isso seja o destino de todos (Edna Pereira, 60 anos).(...) No momento da morte achamos que nossa missão terrena terminou e que em algum ligar vamos reencontrar os queridos que se foram (Aquiléa Pinheiro, 24 anos).(...) A angústia se dá pela ausência dos entes que se foram, mas com o tempo, tudo torna-se natural com o saber do fim que acontecerá a todos (Ana Maria, 42 anos).(...) Toda vida tem um fim (Antonio Norões, 46 anos).

Diante desses relatos, ao expressar a dor em suas diversas formas de celebração e reverência aos falecidos, os vivos superam o desespero, tornando-o objetivo. Os ritos da morte servem para torná-la mais visível, fazê-la passar de um fatídico e estranho fato, para um sentimento pensado, qualificado. Ao não esquecer a memória do falecido, o vivo torna natural a partida “daqueles que vão”, momento onde os mortos ajudam os vivos a encontrarem respostas para questões provindas dos sentimentos de desespero e fatalidade. Teias de relacionamentos que transcendem o que é visível, criando um ato simbólico historicamente vivido entre os vivos:

Os ritos de morte de todas as culturas – como aparentemente alegre e mesmo festiva Dança de São Gonçalo que adiante descrevo – metaforicamente protege os vivos e sua sociedade de se verem ameaçados da destruição ou da desordem regida pelo poder natural de a morte multiplicar-se ou por ser poder simbólico de tomar corpos e vidas e criar vazios (BRANDÃO, 1989, p. 38).

Outro valor socialmente afirmado na relação entre vivos e falecidos através de atos celebrativos no dia dos finados, é o alento proporcionado pela religião. Ela corrige a dicotomia da incerteza após a morte, o que será do ser após sua partida “desse mundo”. A religião não procura negar a evidência do morrer, mas o dota de característica que a amplia para “outras dimensões”. A morte diante da perspectiva religiosa, não destrói o ser, mas o desloca para um “além mundo”, para um “perfeito paraíso”. Ela transporta-o para um outro mundo, no qual o “terreno falecido” garante a sucessão de sua existência na passagem de efêmeros eventos. Concepção mítica coletivamente construída pelos fiéis religiosos:

O que me deixou conformada com a morte da minha mãe foi o refúgio espiritual encontrado na religião (Ana Maria, 42 anos).(...) A religião explica que aqui é apenas uma passagem em que à hora chega e assim temos que voltar (Aquiléa Pinheiro, 24 anos).(...) Ela (religião) ensina que é para ter a salvação (Maria Norões, 52 anos).

Uma forma de alento espiritual que nutre os indivíduos de uma proteção e esperança em relação à morte:

Ora, e como existe entre as crenças do catolicismo popular e vivíssima suposição de que mesmo uma mãe exemplar em vida pode não alcançar a “salvação eterna” e tornar-se, “lá do céu junto a Deus”, uma protetora dos filhos vivos, desde que tenha morrido com alguma dívida de promessa, existem também vários recursos religiosos por meio dos quais sempre é possível saldar a dívida para que o ciclo do destino se complete, e toda uma seqüência de relações essenciais interrompidas sejam retomadas (BRANDÃO, 1989, p. 17).

Além de toda a transcendência que a celebração dos finados operaliza em relação ao cotidiano ao afirmar determinados valores acolhidos coletivamente, esse rito também carrega consigo uma categoria sentimental intrínseca aos indivíduos: é a famosa saudade, que é dada coletivamente, está dentro e fora de nós, tal como todos nós tornamo-nos saudosistas ao englobar e vivenciar todas as questões e atos de ações trazidos pela relação entre vivos e mortos.

Considerações Finais

Detecta-se que o dia dos finados, a partir do ato de celebrar e ser celebrado, na relação entre vivos e mortos, cria uma relevante formação identitária para os indivíduos. Formação esta, que se destina a transcender o cotidiano para operalizar no imaginário coletivo, valores que amenizem a difícil relação que as pessoas mantém com o iminente e intranscendente fato da morte.

Através de mitos e ritos oficializados, essa fúnebre data transcende a rotinização, transfigura os aspectos socialmente firmados, visando afirmar outros valores coletivamente aceitos. Na relação entre vivos e falecidos, no ato de reverenciação, afirma-se o valor da visibilidade da morte. Pois quando o vivo expressa a sua dor nos ritos naturalizados nesse evento, ele supera o desespero, tornando-o objetivo. Transformando dessa forma, a morte em um sentimento mais palpável, pensado, fase na qual pode ser compreendida pelos seres humanos.

Outro valor que funda o imaginário coletivo na data dos finados é o alento proporcionado pela religião. Ela surge como um "paliativo" contra o "abismo" e "incerteza" que é o morrer, que ao invés de negar tal fato, o dota de características que a amplia para "outras dimensões"; proporcionando aos indivíduos, uma boa promessa e sentido no estágio final de suas vidas.

Por fim, além de toda a transcendência que a celebração dos finados operaliza em relação ao cotidiano, esse rito também carrega um intranscendente sentimento, que é universal e intrínseca a todos. É a famosa saudade, que está dentro e fora de nós, tal como todos nós tornamo-nos saudosistas ao englobar e vivenciar todas as questões e atos de ações trazidos pela relação entre vivos e mortos.


Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. L’économie des Échanges Linguistiques. Paris: Langue Française, 1977.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na Rua. Campinas: Papirus, 1989.

CHESNEAUX, Jean. Modernidade Mundo. Petrópolis: Vozes, 1996.

DAMATTA, Roberto. A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

MARCONI, Marina de Andrade. Antropologia: uma introdução. 3ed. São Paulo: Atlas, 1992.

Nenhum comentário: