quarta-feira, 20 de outubro de 2010

ASPECTOS SOCIAIS DE LEGITIMIDADE DA UMBANDA



por Dennis de Oliveira Santos

Considerações Iniciais

Fortaleza vê-se mais uma vez envolvida numa grande manifestação religiosa, provinda de sua pluralidade de manifestações sociais. Neste contexto, insere-se o dia 15 de agosto, data ritualizada como o dia da padroeira da cidade, a Nossa Senhora de Assunção. Entretanto, o que se percebe é que a maior manifestação religiosa nesta data não possui caracteres genuinamente católicos. Situação social em que as manifestações populares inserem-se frente a qualquer tipo de mecanismo oficial, a qual enquadra nossos rituais de acordo com certos interesses de grupos hegemônicos.

Surge então aí, a manifestação umbandista, a festa em homenagem a Iemanjá, a mãe d’água. Fato um tanto peculiar, pois neste instante, surge uma imensa massa de fiéis da umbanda, se reunindo num imenso local. A cidade que é oficialmente sacralizada por igrejas e paróquias, cede espaço para uma multidão de pessoas enquanto praticantes de crenças afro-brasileiras, os quais não se vêem rotineiramente circulando na cidade. São inúmeros terreiros que se reúnem, saem da “escuridão” da “informalidade”, para cultuarem suas entidades místicas.

Diante deste contexto, podemos construir indagações para refletirmos acerca de nossas manifestações religiosas: quais os elementos sociais da umbanda podemos detectar como traços da legitimação da cultura popular brasileira? A umbanda pode ser descrita diante das outras religiões, como uma crença que possui uma maior identificação simbólica para as classes populares?

Metodologia de Pesquisa

Este trabalho foi desenvolvido através de uma perspectiva antropológica, visando estudar o homem e suas produções sociais. Esse projeto é baseado em duas ferramentas de estudos aplicados no campo antropológico: a antropologia social e o método etnográfico.

A antropologia social é o estudo dos processos e da estrutura social, seu interesse está centrado na sociedade e suas instituições. Define-a conceitualmente da seguinte forma, “os antropólogos sociais estudam os costumes, instituições sociais e valores dos povos e os modos através dos quais esses se inter-relacionam. Seu interesse central, embora não o único, está nos sistemas de relações sociais” (BEATTIE, 1977, p. 37).

O método etnográfico consiste na descrição e análise das sociedades humanas, visando levantar todo o tipo de dado, para melhor compreender a cultura específica de um determinado grupo. Tal método “consiste na observação e análise de grupos humanos considerados em sua particularidades” (LEVI-STRAUSS, 1967, p. 41).

A Reorganização Social dos Negros

Mãos para o alto, olhos fechados, grande concentração “espiritual”. O pai de santo ecoa seus cantos de “oié Iemanjá”, uma senhora totalmente “dominada” por uma “entidade religiosa”. Tudo isso, feito em um grande círculo, em total frenesi. Grande parte da população brasileira, em seus aspectos conservadores, hierarquizados, católicos; em suas concepções retalhadas, minimizadas e totalizantes sobre as atuais crenças afro-brasileiras, nomeiam de forma preconceituosa toda essa manifestação religiosa, em uma simples palavra: a “macumba”. Porém, o que é realmente a umbanda?

A umbanda nasceu de uma necessidade dos descendentes de ex-escravos da Colônia, de reorganizarem suas crenças africanas, que estavam sendo fragmentadas. A religião nasceu juntamente com as grandes cidades e a industrialização, quando o negro se torna uma espécie de sub-proletário, deixando os doloridos dias de pelourinho, para agora enfrentar as desumanas condições de trabalho, de configuração capitalista.

Essa manifestação religiosa possui um cunho social, que consiste numa tentativa de reorganização dos cultos africanos desfigurados sob o nome de macumba. Uma luta social os negros junto a uma sociedade preconceituosa e hierarquizante, na busca de elementos culturais que formem uma manifestação com caracteres afros-descendentes. Algo que não acontece em toda sua totalidade, em função de diversos sincretismos religiosos, com meios católicos e espíritas.

Sincretismo Religioso Afro-Ibérico

A Virgem Maria e Iemanjá: catolicismo e crenças africanas, monoteísmo e politeísmo, Europa e África, branco e negro. Como podem duas concepções culturais tão distintas entre si, se interligarem num momento de manifestação religiosa? Quais fatos configuraram este sincretismo religioso?

A manifestação popular no Brasil Colônia, era, na verdade, um discurso fragmentado, semi-oculto pela oponente visão das elites. Grupo intlectualmente dominante, que, ao longo dos séculos, criou mecanismos que inibissem as manifestações culturais e políticas por parte das classes subalternas. As quais, dispersas, suas manifestações só poderiam ser exercidas a partir do momento em que eles interagissem com elementos culturais da classe dominante; no caso da religião, com o catolicismo. Uma espécie de “mistura cultural”, “caldeirão dos deuses”, pois só a crença disfarçada, fragmentada, incorporada no seio cristão, é que poderia ser manifestada pelos negros escravos.

Domínio de segregação e fragmentação cultural que impediu uma prática efetiva das práticas religiosas trazida dos países africanos. Forma drástica de um processo de aculturação, no qual, os escravos, desgarrados de suas matrizes, para servirem o senhor branco em distantes terras, eram submetidos a toda uma estrutura impositiva, que lhes acarretavam a desenraização de suas originais tradições.

Fatos sociais que demonstram um processo histórico no qual “o negro e o índio, submetidos a esse processo, eram, primeiro, “desumanizados”, ao serem tratados como coisas ou como bichos, enquanto permaneciam boçais, depois re-humanizados ao se converterem em ladinos pelo aprendizado da língua do senhor, pela incorporação compulsória ao novo regime de trabalho, pela adaptação à nova dieta que terminam por integrá-los na nova sociedade e por aculturá-los” (RIBEIRO, 1993, p. 321).

Processo onde se observa a interação entre matrizes européias, ameríndias e africanas, que fundidas entre si, vão formando ao longo das décadas, um novo tecido cultural para a população brasileira. Ato único de ressignificação da nova cultura popular, o que atesta que ela não aceita as oposições clássicas, não aprisiona os símbolos, atribuindo-lhes um único sentido e por isso os reinventa (VANNUCCHI, 1999).

Assim, não há oposição entre orixás e santos católicos na umbanda. Tudo é uma questão de “reagrupar”, sincretizar as duas crenças pré existentes a formação da umbanda. Santa Bárbara é Iansã, o Senhor do Bonfim é Oxalá, Santo Antônio toma a roupagem dos orixás “bons de guerra”. Iemanjá e a Virgem Maria convivem pacificamente, “intercedem juntas” pelos “pobres fiéis”, amenizando toda a carga histórica de imposição e segregação cultural.

O Jeitinho Brasileiro

Qual o elemento que possibilita este sincretismo religioso? A resposta está num procedimento estrutural, quando se trata de articular as disparidades entre a burguesia e a classe assalariada. Um estilo de fazer e lidar com as vicissitudes do quotidiano do país, o famoso “jeitinho brasileiro”.

O “jeitinho brasileiro” é “uma forma especial de se resolver algum problema ou situação de difícil ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a forma de burla a alguma regra ou norma preestabelecida, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou habilidade” (BARBOSA, 1992, p. 45). Nesse contexto, os negros necessitavam legitimar a sua crença diante do preconceito das elites. Qual foi a solução? Usar o famoso “jeitinho” para navegar com maior liberdade social diante dos costumes e leis previamente configurados contra essa etnia.

O espiritismo estava cada vez mais em voga dentre as elites, então, os negros, com a cultura do “embramquecimento”, revestiram a umbanda de caracteres espíritas para que suas crenças fossem menos perseguidas pela classe dominante. Fundavam centros espíritas, mas que na verdade eram verdadeiros terreiros. Ação peculiar e criativa para resolver uma difícil situação, o autentico “jeitinho brasileiro”.

Foi intensa a influência da religião espírita sobre a umbanda. Desse sincretismo, a religião de preceitos africanos têm a comunicação com os mortos, a reencarnação, os passes, as adivinhações pela água, a ênfase na caridade assistencial, a lei do karma e os bons e malévolos fluídos. Enfim, todo um feitio espírita, de uma comunidade mais intelectualizada, que foi inserida nos cultos de umbanda.

Sincretismo religioso oriundo de nosso institucionalizado e já rotineiro “jeitinho brasileiro”. O mesmo ato que cria um modo bem peculiar da sociedade brasileira perante as suas religiões. Pois esta população consegue dá um “jeitinho”, integrar diversas manifestações religiosas a seu bel prazer: aos domingos o brasileiro vai rezar na missa, as terças vai ter contato com os espíritos nos centros kardecistas e aos sábados vai “baixar” algum orixá num terreiro.

Concepção Animista

Uma característica marcante dos orixás na concepção umbandista é a de que todos os seus orixás pertencem à natureza. A concepção de mundo é dividido em domínios por suas respectivas divindades: a natureza, o mundo civilizado e o mundo marginal.
Neste contexto, o caboclo, oriundo de uma idéia romântica da natureza, é o sujeito do qual emanam qualidades que se vinculam ao estado selvagem. São eles os personagens altivos, indomáveis. Quando “desce” um caboclo no corpo de um médium, é impossível não reconhecê-lo: solta gritos, bate com as mãos sobre o peito, se torna o verdadeiro senhor do local.

Forma “selvagem” de representação simbólica, que tem o intuito de uma certa aversão a civilização urbana. São seres da natureza, que não se sentem comprometidos com os valores da sociedade do capital. Uma tentativa de transvalorização diante dos conservadores valores, uma “libertação” dos indivíduos diante dos rígidos padrões cristãos em suas manifestações religiosas.

Considerações Finais

Concluí-se que a umbanda traz em sua gênese, diversos traços da cultura popular brasileira, nos quais há uma identificação das camadas populares, havendo uma intensa aglutinação deste setor da sociedade nos cultos umbandistas. Ela denota um não esgotamento de todo o repertório de santos e espíritos existentes, surgindo aí, a diversidade de elementos tão distintos, mas que interagem entre si em nossa cultura. Esta religião está entre brancos, negros e índios – a crença como o paradigma da nação brasileira. Também apresenta outros traços de nossa organização social:
• É uma reformulação social dos negros (ex-escravos), na tentativa de reorganizarem suas crenças africanas que estavam sendo fragmentadas.
• Legitima-se através do “jeitinho brasileiro”, o ato “especial” e institucionalizado que a sociedade possui para resolver alguma emblemática situação socialmente estabelecida.
• Manifestação cultural que agrega todo o tipo de minoria, todo o indivíduo excluído da sociedade, os quais recebem um papel na umbanda.
Podemos dizer que todo o poder religioso dessa manifestação, decorre de uma acepção social; uma inversão simbólica em que os estruturalmente inferiores na sociedade são detentores de um poder mágico particular, provindo da própria condição que possuem.

O significado social da umbanda é inverter os valores da hierarquia que ordena os espíritos. O homem branco, elitista e católico não tem os poderes que possuem seus subalternos. Esses grupos estruturalmente inferiores, ganham por meio da inversão simbólica um poder mágico inigualável. A umbanda forma um poder mágico, o qual nutre os socialmente excluídos (negros, proletários, homossexuais) de certas qualidades e interações sociais, capazes de virar pelo avesso as razões e costumes que legitimam a hierarquia social.


Referências Bibliográficas

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BEATTIE, John. Introdução à Antropologia Social. 2ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1977.

LEVI-STRAUS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira. São Paulo: Loyola, 1999.

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