sexta-feira, 11 de março de 2011

O Samba como Instrumento de Resistência da Cultura Popular Brasileira

por Dennis de Oliveira Santos



Após o fim da ditadura militar no país, várias manifestações populares, que foram proibidas de serem praticadas pelos aparelhos estatais de censura, começaram a serem resgatadas por estudiosos de nossa realidade social. Havia, nesse momento, o interesse de se “(re)conhecer” a cultura popular brasileira, que nasce na vida cotidiana de nosso povo como fenômeno histórico enraizado em nossa realidade sócio-cultural, mas que, gradativamente, ao longo das décadas do século XX, foi sendo marginalizada pelo Estado e por determinadas concepções da sociedade civil brasileira.

É nesse contexto que se insere o samba, genuíno estilo musical brasileiro, permeado de criatividade reflexiva acerca de nossas relações sociais, mas que foi marginalizado pelas camadas abastadas locais. O que culminou na etnocêntrica concepção de que este tipo de música é vulgar e degenerada em relação a outros estilos musicais (música erudita, por exemplo), e de que os compositores do gênero são ignorantes ou “alienados” dos temas políticos e históricos. Diante disso, quais aspectos sociais presentes no samba revelam a sua importância cultural para a formação identitária do brasileiro?

Metodologicamente o assunto é captado através do materialismo histórico anti-economicista, o qual é baseado numa concepção dialética acerca das atividades humanas, no qual se pretende estudar o desenvolvimento histórico de uma concepção de mundo à luz da construção teórico crítica. Para que isso seja efetivado, esse método acontece num processo contínuo, permanente, que através da reconstrução do processo histórico da referida visão de mundo, consegue captar os elementos que determinaram à estabilização dessa concepção analisada, para que assim se possa responder aos problemas atuais do momento histórico em discussão (GRAMSCI, 1966).

O samba é um estilo musical de raízes africanas, surgida da fusão de várias manifestações culturais dos ex-escravos, como a dança do côco, festas de terreiros, pernadas de capoeira, e o uso de palmas, pandeiros, pratos e facas para marcar o ritmo. Esse segmento musical surgiu na Bahia, nos fins do século XIX, mas com a abolição da escravatura (1888), a migração de afro-baianos para o Rio de Janeiro se tornou especialmente forte. E nas favelas e camadas populares da capital do país na época, o samba se legitimou como fluente forma de manifestação cultural das classes sociais excluídas as atenções do Estado (VIANNA, 1995).

Isso se deve ao preconceito presente historicamente no seio da sociedade brasileira, que tende a distinguir dois planos culturais no Brasil: o erudito, marcado pela branquitude e “refinamentos” de europeidade; e o popular, das camadas subalternas, que apesar de toda sua criatividade, é tachado pelas elites de vulgar e pouco criativo (VANNUCCHI, 2002).

Porém, a partir dos anos 20, o samba tem sua ascensão social na pulsação morro/cidade. E o estilo se tornou um foro privilegiado de discussão sobre as grandes questões nacionais. As desigualdades sociais, a insuficiência do Estado, a aculturação de nossos hábitos, tornaram-se temas bastante adequados nas letras dos sambistas. Sátiras, comentários políticos, críticas sociais, incidentes do cotidiano – todos esses motivos temáticos se fazem presentes no samba (SODRÉ, 1979).

Desse modo, surgem uma gama de aspectos sociais que sustentam a legitimidade social do samba. E um deles é a sátira, muito utilizado nas canções do paulista Adoniran Barbosa. Na música intitulada “Conselho de Mulher”, o filho de imigrantes italianos reproduz intencionalmente erros gramaticais na letra da música como forma de protesto diante do “linguajar adornado” e “bem falado aos cânones dicionarescos” das elites. Além de tecer críticas às injustas condições da divisão social do trabalho capitalista, que através da ideologia do progresso, explora a mão de obra operária para consolidar a acumulação do capital. É o que se observa em trechos de sua obra:

Pogressio, pogressio.
Eu sempre iscuitei falar, pogressio vem do trabaio,
Então amanhã cedo, nóis vai trabalhar.
(...)
Quanto tempo nóis perdeu na boemia.
Sambando noite e dia, cortando uma rama sem parar.
Agora iscuitando o conselho da mulher.
Amanhã vou trabalhar, se deus quiser, mas deus não quer! (BARBOSA, 1975).

A postura de criticidade frente a impunidade dos governantes/sistemas judiciais e as desigualdades sociais é outro aspecto presente no samba. Na música “Vítimas da Sociedade”, o morador das favelas cariocas, Bezerra da Silva, descreve a realidade social de um povo faminto e marginalizado através do estigma de que “todo sujeito que mora na favela é ladrão”. Além de descrever as desigualdades econômicas entre as classes sociais, quando comenta acerca da falta de alimentos aos pobres em contraposição ao consumismo exacerbado do rico, o sambista tece críticas ao sistema judiciário e sua impunidade aos crimes de “colarinho branco” cometido por nossos governantes. Vejamos a letra:

Só porque moro no morro
A minha miséria a vocês despertou
A verdade é que vivo com fome
Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador
Se há um assalto à banco
Como não podem prender o poderoso chefão
Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão
(...)
Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
(...)
Somos vítimas de uma sociedade
Famigerada e cheia de malícias
No morro ninguém tem milhões de dólares
Depositados nos bancos da Suíça (SILVA, 1985).

A resistência popular diante da aculturação de nossos hábitos em função da influencia estrangeira é outra marca do samba (CHAUÍ, 1986). Noel Rosa, na música “Não Tem Tradução”, critica os efeitos da influência de palavras e costumes franceses e norte-americanos, que tendem a transplantar aspectos culturais exóticos a nossa realidade social. Ação que vai progressivamente transformando o modo de agir de nosso povo. Assim diz a crítica do músico carioca:

O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
(...)
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
E só querendo dançar o Fox-Trote
(...)
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone (ROSA, 07/08/2007).

Enfim, percebe-se que o samba é uma manifestação popular bastante criativa e reflexiva diante de nossas relações sociais. Através de aspectos sociais como a sátira, a criticidade e a resistência popular, esse estilo musical apresenta as inquietações de sua sociedade: as desigualdades sociais, a aculturação de hábitos, as impunidades judiciais, etc. Tornando-se um discurso tático de resistência dos excluídos no interior do campo ideológico do modo de produção dominante – o samba é ao mesmo tempo um movimento de continuidade e afirmação de valores para a identidade do povo brasileiro.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Adoniran. Adoniran Baborsa. São Paulo: Odeon, 1975. 1 disco compact (45 min): digital, estéreo.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.

ROSA, Noel. Não tem Tradução. Disponível em: . Acesso em: 7 de Agosto de 2007.

SILVA, Bezerra da. Malandro Rife. São Paulo: Rca Vik, 1985. 1 disco compact (39 min): digital, estéreo.

SODRÉ, Muniz. Samba, o Dono do Corpo. Rio de Janeiro: CODECRI, 1979.

VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2002.

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

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